Completando 300 anos, 'Robinson Crusoé'
é um clássico paradoxal. Mais do que aventura infantil, livro revela atitudes
culturais perturbadoras
Vista da cidade San Juan Batista, na Ilha Robinson Crusoé, arquipélago Juan Fernandez, no Oceano Pacífico |
Em 25 de abril de 1719, há
exatos 300 anos, o editor londrino William Taylor lançou um livro que veio a se
tornar um dos mais famosos da história.
A página de título original
dizia ‘A Vida e as Estranhas e Surpreendentes Aventuras de Robinson Crusoé de
York, Navegador’, e trazia abaixo disso um subtítulo explicativo:
‘Que viveu 28
anos solitário em um ilha desabitada na costa da América, perto da foz do
grande rio de Oronoque; tendo sido levado à terra por um naufrágio, no qual
pereceram todos os homens, exceto ele. Com um relato de como ele por fim foi
estranhamente libertado por piratas’. E ao pé da página, as palavras mais
importantes: ‘Escrito por ele mesmo’.
A despeito das aparências, ‘Robinson
Crusoé’ não era de fato uma memória emocionante de sobrevivência, e sim uma
imitação esperta desse gênero (embora tenha se baseado no caso real de
Alexander Selkirk, que passou por quatro anos de isolamento semelhante). O
verdadeiro autor, Daniel Defoe, era um pequeno empresário e escritor de aluguel,
que operava na Grub Street (rua londrina onde se concentravam esses
escritores).
Ao longo de sua vida, Defoe,
1660-1732, trabalhou como jornalista, comerciante de vinho e meias, gerente de
uma olaria, e agente secreto do governo. Pediu falência duas vezes e, em certo
momento, passou três dias no pelourinho por difamação sediciosa.
Nos dez anos finais de sua
vida, ele também escreveu alguns romances revolucionários, entre os quais o
ousado ‘Moll Flanders’ e ‘Diário do Ano da Praga’, esse último uma descrição
excepcionalmente realista, embora fictícia, da epidemia de peste bubônica em
Londres em 1665 e 1666.
Mas ‘Robinson Crusoé’
continua a ser algo de verdadeiramente especial. Pertence à pequena categoria
de clássicos —outros títulos incluem ‘Dom Quixote’ e ‘A Odisseia’— que sentimos
ter lido mesmo que isso não seja verdade. Versões da história para crianças e
ilustrações como as de N.C. Wyeth tornaram as principais cenas do livro,
instantaneamente reconhecíveis.
Abandonado em uma ilha
deserta, Crusoé remove da carcaça de seu navio naufragado tudo que lhe pode ser
útil, constrói um refúgio fortificado em uma caverna, e adquire cabras e um
papagaio de estimação; planta cevada e milho, e aprende a fazer roupas com
couro de animais. O momento mais dramático de todos ocorre sem preâmbulo ou
alarde.
‘Aconteceu certo dia, lá pelo
meio-dia, a caminho de meu bote. Fui tomado por completa surpresa ao ver a
pegada de um pé humano descalço na costa, claramente visível na areia; foi como
se um relâmpago tivesse me atingido, ou como se eu tivesse visto uma aparição;
eu tentei escutar, eu olhei ao meu redor, mas não consegui ouvir coisa alguma,
ou ver coisa alguma; subi a uma elevação para olhar mais ao longe; caminhei
costa acima e costa abaixo, mas foi só o que pude ver. Nenhuma outra pegada
exceto aquela’.
Muito mais tarde, Crusoé
testemunha um festim canibalesco e ajuda a resgatar um cativo a quem batiza de
Sexta-Feira. Mais adiante ainda, um grupo de amotinados desembarca na ilha, mas
Crusoé e Sexta-Feira, por força de armas e subterfúgios, restauram o capitão
real do navio ao seu comando.
Muitas edições do romance em
seguida se encerram com as seguintes palavras abruptas: ‘Nessa nau, depois de
uma longa viagem, cheguei à Inglaterra em 11 de junho, no ano de 1687, tendo
estado 35 anos ausente’.
Repare no número, 35. Os 28
anos de Crusoé na ilha representam apenas um episódio em uma vida longa e
repleta de ação. Antes do naufrágio, o jovem Crusoé já havia sobrevivido a
diversos desastres marítimos, a dois anos de escravidão pelos ‘mouros’, a uma
fuga audaciosa em um pequeno bote costa da África abaixo, e a uma travessia do
Atlântico rumo ao Brasil.
Depois de adquirir uma
plantação lá, ele conta que ‘a primeira coisa que fiz foi comprar um Escravo
Negro, e também um criado europeu’. Mais tarde, no momento do naufrágio, Crusoé
estava na verdade navegando para a África a fim de adquirir novos escravos, a
mando de um consórcio de senhores rurais brasileiros. É triste dizer, mas o
cavalheiresco herói de Defoe tipicamente percebe outras raças —e classes
sociais— como gado, brutos ou crianças crescidas, ainda que a humanidade e a
inteligência ágil de Sexta-Feira por fim o levem a questionar seus preconceitos
entranhados.
Na verdade, a biografia
completa de Crusoé transforma o romance em um texto problemático. As edições
completas do livro não se encerram com a partida dele da ilha; elas prosseguem
relatando os esforços de Crusoé para retomar sua plantação, e os lucros que lhe
eram devidos, e seu casamento posterior na Inglaterra. ‘Novas Aventuras de
Robinson Crusoé’, continuação publicada no final de 1719, descreve novas
viagens, começando por seu retorno à ilha.
Quem quer que leia ‘Robinson
Crusoé’ como adulto, perceberá o pendor de Defoe por sentenças que ocupam todo
um parágrafo mas ainda assim são perfeitamente claras. Detalhes minuciosos
fazem muito por emprestar veracidade à narrativa: depois de um relato
perturbador sobre seu quase afogamento, Crusoé sai pela costa buscando seus
companheiros de viagem, mas encontra apenas ‘três de seus chapéus, uma touca, e
dois sapatos que não do mesmo par’.
Como apontaram muitos
estudiosos, o náufrago Defoe não é um primitivo que promove a volta à natureza,
mas um capitalista empreendedor, ávido por transformar a natureza bruta em
produtos úteis, e que mantém listas cuidadosas daquilo que tem, faz e colhe.
Ele se compara frequentemente a um rei, faz com que o Sexta-Feira o chame de ‘mestre’
e, mais tarde, assume o título de governador.
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Peter O'Toole and Richard Roundtree em cena de 'Sexta-Feira', adaptação de 'Robinson Crusoé', de 1975 |
Onde floresce o capitalismo,
a ética protestante pode demorar a surgir? A quase morte de Crusoé por uma
febre o conduz a um despertar espiritual e ao arrependimento. Ele reconhece a
desobediência ao seu pai como seu Pecado Original, aprende a confiar na Providência
e faz um balanço no qual anota todas as graças recebidas. Vê sua vida interior
como uma psicomaquia, uma luta entre os ‘Ditames dos meus Caprichos’ e a razão,
senso comum e várias premonições ou 'Orientações secretas' de
espíritos guardiões que habitam um ‘mundo invisível’. Mesmo assim, pouco depois
de ensinar cristianismo básico a Sexta-Feira, Crusoé, a despeito de algumas
reservas iniciais, organiza o massacre de 17 ‘selvagens’.
Um clássico é um livro visto
por novas gerações como digno de novas visitas e de novo diálogo. Escrito
vividamente, repleto de paradoxos e de atitudes culturais perturbadoras, e
revelando uma veia profunda de apego ao sobrenatural por sob sua superfície
realista, ‘Robinson Crusoé’ é, de fato, um desses clássicos, muito mais que uma
simples aventura para crianças.
Fonte: Michael Dirda | WP
(JA, Mai19)