Quando
alguma polêmica captura as paixões e o debate público, passamos por uma espécie
de exercício coletivo de lidar com conflitos e divergências. Algumas que me vêm
à mente: a causa da morte do Ayrton Senna, os rolezinhos em São Paulo, o
impeachment de Dilma Rousseff, a eleição de Donald Trump, o corpo nu no museu,
o 7x1, o acordo das Coreias, Marielle Franco assassinada, o clipe da Anitta ou
a revelação sobre as autorizações de Ernesto Geisel para assassinatos de
opositores ao regime.
Com o tempo,
as discussões e assuntos vão esfriando até serem esquecidos ou ofuscados por um
novo tema da vez. Sejam banalidades ou coisas muito sérias, há qualquer coisa
de ameaçador quando somos frontalmente contrariados. Por exemplo, nos debates
políticos recentes, fala-se bastante da cisão ou polarização das opiniões como
algo muito ruim ou perigoso para a sociedade.
O sentimento
de estarmos certos é muito prazeroso. Essas polêmicas são prato cheio para
acaloradas conversas de bar, gostamos de chegar a opiniões sobre tudo. Mas nem
sempre a coisa acontece no registro do prazer, e ficamos ansiosos ou
angustiados quando não estamos muito seguros, ou quando percebemos contradições
naquilo de que achávamos ter certeza.
É difícil
sustentar o reconhecimento da ignorância ou a incerteza. Alguns estrangeiros
reclamam que o brasileiro é tão zeloso ao dar informações na rua, que aponta a
direção e dá instruções até quando não sabe o caminho. Mas, para além das
situações pitorescas, algo mais preocupante acontece quando, em vez de suportar
a dúvida e a insegurança, preferimos o discurso rápido que se impõe ao outro
pela força e de modo violento.
Não à toa,
as fake
news são um sucesso. Em vez de ter que
lidar com a complexa e frustrante realidade de uma determinada questão (que
exigiria tempo e estômago) tudo pode se resolver com uma única mensagem de WhatsApp ou uma notícia que diz tudo aquilo que você gostaria
de ouvir. O principal objetivo de toda fake news é encerrar uma questão, impedir que se pense mais
adiante sobre ela.
A palavra
pode se tornar algo como um aríete, em que colocamos toda nossa força para
abrir caminho e derrubar tudo na frente. O diálogo é substituído por uma luta
de sumô – quem empurrar mais forte, acha que levou. A capacidade para a dúvida
é substituída pelo fascínio da força, que dispensa a frustração de suspender as
próprias certezas para poder conversar com alguém que pensa de forma diferente.
Ninguém
gosta muito de ficar na dúvida, de não saber onde está pisando. Mas se colocar
intencionalmente na dúvida – e suportar
ficar com ela – é indispensável para tentar entender por que o outro pensa de
forma tão contrária à nossa.
Ela é indispensável para o pensar, inclusive sobre nossas
próprias ideias.
Se não
conseguimos pensar algo, o máximo que podemos fazer com uma ideia que nos contradiz
e questiona, é vomitá-la, colocá-la para fora, projetar para outra coisa,
recusar, aniquilar. Nesse tipo de situação, usamos a linguagem não para nos
comunicar, mas para nos livrar de um excesso, palavras e pensamentos que são
intoleráveis. O grito ou o xingamento são formas de nos livrar da frustração ou
da raiva. A palavra – o palavrão – carrega uma parte das intensidades para
fora, trazendo um alívio imediato.
Reconhecer a dimensão trágica de nossa existência significa nos tornarmos mais capazes de suportar a dor e a dúvida. É justamente isso que a atitude obtusa não consegue, ou prefere não fazer.
Em certa
medida, com maior ou menor sutileza, todos nós fazemos isso, e faz parte da
natureza da linguagem também funcionar dessa forma. Os bebês urram com todas as
forças por coisas como fome, frio, calor, desconforto físico, falta da mãe,
sono... Aos poucos, quando começam a adentrar mais a linguagem, vão aprendendo
outras formas de lidar com a frustração e dor, e passam a ser capazes de
antever a remediação daquela situação. Além de chorar, começam também a
entender que o adulto diz algo sobre aquilo que eles sentem – o que mais tarde
eles próprios poderão fazer. Contudo (e há uma bela ironia nisso), mesmo no
adulto as palavras e a linguagem podem, por sua vez, ser usadas não para
comunicar, mas como válvula de escape, como um urro.
A
psicanálise encontrou na tragédia grega um modelo que reflete a complexidade da
mente humana: nascemos em um mundo que supera em muito os recursos que temos
para apreendê-lo, somos atravessados por forças e destinos que vão muito além
de nosso controle e de nossa apreensão pela consciência. A realidade (e nisso
também se inclui a realidade interna de nossa própria mente) possui uma
complexidade que nos obriga a conviver com a dúvida e parcialidade do
conhecimento.
Reconhecer a
dimensão trágica de nossa existência significa nos tornarmos mais capazes de
suportar a dor e a dúvida. É justamente isso que a atitude obtusa não consegue
ou prefere não fazer – ao invés, busca soluções mágicas e dogmáticas – simples
– que resolvam as contradições e deem a sensação (ainda que ilusória) de
ausência de dúvida.
A
demonização do outro, do opositor, pode também carregar um motivo mais
profundo: ele passa a ser depositário daqueles aspectos da realidade que eu
prefiro não enxergar ou reconhecer em mim mesmo. As dúvidas e incertezas,
quando não temos a capacidade para suportá-las, podem ser perturbadoras da
confiança na realidade: o mundo passa a ser um lugar ameaçador e hostil, cheio
de demônios. Nesse caso, alguma compensação é conseguida com muito esforço
mental, por meio de fantasias de controle e onipotência – como mais muros e
armas, por exemplo.
Uma das
características mais estarrecedoras dos genocídios dos judeus na Alemanha
nazista, dos indígenas na colonização das Américas, ou dos congoleses sob
domínio do príncipe belga Leopoldo II era a aparente racionalidade asséptica
dos extermínios, realizados de forma lógica e simples. O pensar, nesses
períodos, era substituído pela simplicidade brutal das ordens, pelos dogmas e
pela burocracia. Não havia espaço para a dúvida, para o diferente, para o meio
termo, para o que fosse mestiço. Nesse estado paranoide, o que quer que
contrarie as certezas é visto como contaminado, sujo, degenerado, e precisa ser
eliminado.
Um mundo de
certezas rígidas, avesso a transformações, constitui um cenário compensatório
ideal quando a capacidade para a dúvida está ausente. Por exemplo, a atitude
conservadora exagerada ou excessiva pode ser indicadora de que quaisquer
mudanças, por si só, são sentidas como ameaçadoras. O que se ameaça, do ponto
de vista psicológico, é a própria identidade, ou o sentimento de confiança no
mundo. A certeza ignóbil, além disso, se esforçará ao máximo para tornar tudo
aquilo que é desconhecido e estrangeiro em coisa conhecida. A familiaridade é o
terreno a ser defendido, e não raro a xenofobia também encontra aqui seu lugar:
o mesmo, a uniformidade, “os meus”, a recusa da diferença. Contudo, o contato
com a realidade exige mais: é preciso espaço para a surpresa, para a dúvida e
para o desconhecido.
Wilfred Bion, um psicanalista inglês,
debruçou-se sobre o tema da arrogância em sua clínica, fazendo a correlação
entre três elementos: a curiosidade, a arrogância e a estupidez. Nesta relação,
a curiosidade é o elemento que se perde, quando há o predomínio de um estado de
arrogância. A estupidez passa a estar presente de maneira oculta, enquanto
des-conhecimento dessa perda – faz parte da arrogância, o ocultamento ou não
reconhecimento da própria estupidez. Por fim, a própria ligação entre esses
três elementos é perdida.
Em um
cenário assim, a estupidez não é acidental, mas tem um propósito. Ela
ativamente busca suprimir qualquer fragmento de curiosidade ou indício que leve
ao evento que gerou o estado de arrogância, e à perda da curiosidade. De modo
inverso, o reconhecimento da própria estupidez representaria um primeiro passo
na recuperação daquilo que foi perdido.
A capacidade
para a dúvida é uma conquista fundamental que exige suportarmos uma dose
considerável de frustração. Sem ela temos uma receita certa para catástrofes.
Texto: André De Martini, psicanalista e professor
doutor pelo Instituto de Psicologia da USP. | =Nexo
(JA, Set18)