Uma análise
crua e perturbadora do fim das democracias em todo o mundo Democracias
tradicionais entram em colapso? Essa é a questão que Steven Levitsky e Daniel
Ziblatt - dois conceituados professores de Harvard - respondem ao discutir o
modo como a eleição de Donald Trump se tornou possível.
Neste
horizonte em que as margens de opção se estreitam, vale a pena ler ‘Como as
Democracias Morrem’. Lançado no início do ano e elogiado pela crítica, o livro
já tem sua edição brasileira.
Breve,
instrutivo, claro, com argumentação bem articulada e lúcida, o texto tem o foco
central nos riscos que o governo Trump
representa para a vida política americana. Mas há um olhar para o cenário
mundial, sobretudo países onde o autoritarismo tem reprimido direitos dos
cidadãos. Embora os autores não mencionem o Brasil, algumas reflexões suas
também cabem aqui.
Segundo
eles, democracias já não morrem mais do jeito que morriam antes − as
quarteladas dos tempos da Guerra Fria. Hoje, a trama é mais sub-reptícia e se
dá nas urnas, por eleições, plebiscitos, referendos − ou seja, usando as
próprias instituições democráticas para subvertê-las. Emergindo em momentos de
crise como ‘salvadores da pátria’, autocratas simulam inicialmente um verniz de
democracia, mas logo se põem a solapar suas bases e corroer sua essência. O
processo costuma ser sutil e gradativo, e justamente aí reside seu maior
perigo: sob a fachada democrática, as coisas parecem continuar na normalidade.
Não faltam casos típicos: Turquia, Rússia, Hungria, Filipinas, Venezuela... e a
lista poderia ir bem mais longe.
É auto
evidente que quem defende a democracia não deixará de se opor com firmeza a
candidatos de perfil antidemocrático. Mas como identificá-los? Levitsky e
Ziblatt destacam quatro critérios:
1- Eles
rejeitam as regras democráticas do jogo (ou têm compromisso débil com elas).
Por exemplo, tentando minar a legitimidade de eleições (claro, quando vencidas
por adversários...).
2- Negam a legitimidade dos
oponentes políticos.
3- Toleram a violência, ou
mesmo a encorajam.
4- Mostram
propensão a restringir liberdades civis de oponentes, inclusive da mídia.
‘Um político que se enquadre mesmo em apenas um desses critérios é motivo de preocupação’. E Donald Trump, dizem os autores, se enquadra nos quatro. Que dizer dos candidatos brasileiros? Penso que nem todos passariam incólumes, embora a tendência habitual seja achar que o inferno são os outros. Creio, porém, que uma avaliação objetiva mostrará diferenças de grau e até de patamar.
Volto ao
texto de Levitsky e Ziblatt: não é do nada que demagogos do extremismo
autoritário irrompem na cena política. O caldo de cultura que os promove é o de
crises em que se alastra o descrédito dos valores democráticos. Nos Estados
Unidos, por exemplo, os ataques à democracia não começaram com Trump: já vinham
de antes, sobretudo pela polarização intransigente e belicosa, e foi esse clima
que resultou na sua eleição. Já no Brasil – lembro-me−, uma pesquisa em 2017
constatou que apenas 13% das pessoas se declaravam satisfeitas com a
democracia.
Para a sobrevivência
do regime democrático, o respeito às regras constitucionais é condição
necessária. Será condição suficiente? Pensam os autores que não, pois a vida
democrática depende também de normas não escritas - que existem em toda parte:
no futebol, por exemplo, nenhuma regra manda chutar a bola para a lateral
quando um jogador cai machucado; deixar de fazê-lo, porém, provoca indignação e
é punido com vaias... Entre essas normas, Levitsky e Ziblatt destacam duas
fundamentais: a tolerância mútua e a reserva institucional - ‘forbearance’.
Tolerância
mútua significa que, enquanto os rivais jogarem pelas regras constitucionais,
se aceitará seu direito igual de existir, competir pelo poder, governar. Por
menos que se goste deles, e mesmo detestando suas ideias, trata-se de
reconhecê-los como legítimos participantes do jogo político. Retomando a
analogia com o futebol: eu torço apaixonadamente pelo meu time, mas nem por
isso vou querer a aniquilação dos times adversários − pelo contrário, faço
questão de que continuem jogando, e bem, para que o meu time jogue melhor ainda
e os vença. Do mesmo modo, seria insensato pretender derrotar para sempre os
rivais partidários, não se preocupando em saber se depois disso o jogo
democrático vai continuar sendo disputado ou não.
Reserva
institucional, para os autores, é uma prática de comedimento, de modo a evitar
ações extremadas que, embora respeitando a letra da lei, violam seu espírito.
Já escrevia Cícero: ‘summum jus, summa injuria’ – ‘excesso
de direito, injustiça excessiva’. Em outras palavras, não cabe levar as
próprias prerrogativas até os extremos do ‘jogo duro institucional’ - ‘hardball’, mesmo quando se tem o direito legal de fazê-lo −
quem age assim põe em perigo o sistema democrático existente. Competição é uma coisa; guerra de extermínio, outra.
O descuido
com normas como estas tem atiçado um clima de conflagração que acaba
favorecendo movimentos autoritários. Para a retomada do caminho democrático, é
essencial recuperá-las.
Quando,
porém, as coisas já desandaram a ponto de se estar diante de uma ameaça
extremista, torna-se imperioso juntar as forças de todos os que de algum modo
adotam o denominador comum democrático − por mais distantes que sejam seus
programas políticos. Trata-se de pôr momentaneamente de lado eventuais
divergências e animosidades, formando uma frente ampla na busca do objetivo
maior − a resistência contra o extremismo antidemocrático. Mais ou menos como,
há poucos dias, no Estádio Mané Garrincha, fizeram jogadores do Vasco e
Flamengo ao se unirem para empurrar a ambulância que conduzia um atleta
desfalecido.
Texto: Antonio Carlos Bôa Nova – AMDG
(JA, Set18)