A vida dele foi mudando de tal forma que, a partir de um determinado ponto, começou a se sentir mudado também. Seus gostos, hábitos foram sendo moldados, adaptados, pela sua limitação financeira. Seus amigos, obviamente, já não eram os mesmos; sua família, que o culpava pela ‘desgraça’ que a afetou, o abandonou à própria sorte, e ele partiu para lugar nenhum.
Seus sonhos nunca foram tão modestos
e triviais: onde dormir, o que comer, o que vestir, como se proteger da chuva e
do frio, ..
Nesse novo cenário,
surpreendentemente, haviam momentos alegres e tristes; amizades e antagonismos;
limites; costumes;... E tudo isso, com a
mesma intensidade emocional que tinha esse tipo de ocorrência na sua vida anterior.
A partir de determinado momento, já bem
adaptado à sua vida atual, começou a procurar reduzir as dificuldades e
aumentar as facilidades – como fazia antes. Com base na sua formação e
experiência, foi deixando de ter as atitudes imediatistas de um sobrevivente, e
a promover suas ações dentro de um planejamento sistêmico. A situação começou a
reverter, novas possibilidades surgiram, e ele soube aproveitá-las. E assim, foi se aproximando daquele que já havia sido
algum dia.
Alguns anos mais tarde, agora já bem
situado social e financeiramente, e com muito mais conhecimento da realidade da
vida, teve oportunidade de conhecer num
bar um homem, ainda jovem, a quem ele ouviu e ficou sabendo dos seus problemas. O que aconteceu na vida desse jovem foi muito parecido
com o que aconteceu na sua, e a sua situação atual era muito parecida com a que
ele teve que passar numa determinada
época.
Foi para casa, ficou pensando no
assunto. Estava determinado a fazer algo para ajudá-lo, mas o que fazer? Pensou,
pensou e, finalmente, chegou a uma conclusão: “Se aquele jovem chegou ao fundo
do poço onde ele está, é porque, de alguma forma, ele mesmo provocou isso. Ele
carrega dentro de si alguma disfunção e, portanto, não adianta nada lhe dar algo antes
que ele esteja curado e, assim, possa, efetivamente, aproveitar alguma eventual
oportunidade”.
Então, decidiu ajudá-lo a se curar, a recuperar a sua autoestima, sua capacidade de sonhar, e de
trabalhar para realizar. E, assim
fez. Conseguiu abrigo para ele numa
pensão barata, lhe deu roupas e acessórios simples para usar no trabalho, e lhe
conseguiu inicialmente alguns servicinhos básicos. Conforme foi sentido firmeza, retorno,
entusiasmo, foi aumentando as responsabilidades, salário, benefícios. Gradualmente, o jovem foi se recompondo, até que, finalmente, se recuperou totalmente e pode seguir sozinho dali em diante..
Ele ficou muito feliz com o que
aconteceu, com o que pode proporcionar.
Ele mesmo não tivera essa oportunidade. Sua superação foi conseguida por
mérito exclusivamente seu. Entretanto, tinha consciência de que a maioria desses
seres não conseguem se superar sozinhos e, o que é pior, acabam decaindo mais e mais, num processo
recorrente e sem fim.
Essa reflexão o levou a ter uma ideia. Por que não ajudar mais pessoas assim? Decidiu fazer isso. E, a partir daí, envidou
todos os seus esforços para criar uma ONG
com essa finalidade. E, como resultado do seu trabalho, através
de subsídios públicos e privados que obteve, criou a hoje tão famosa ‘Volta à Vida’, que
desde a sua fundação vem trabalhando nesse sentido.
Passaram-se quase 40 anos desde que
ele se viu abandonado. Hoje, tantos caminhos percorreu, que conseguiu chegar na outra ponta, onde estão as pessoas com condições e disposição de socorrer esses infelizes, desesperados, inconscientes, dependentes. A sua organização tem
a oportunidade, a capacidade, e vem acolhendo e reerguendo, milhares de pessoas que, como ele, já estiveram no limite desumano da indigência.
"Muitas vezes, devemos descer ao fundo do poço, para ver as estrelas refletidas em suas águas."
(JA, Ago14)