Luis, embora ainda jovem pelos
padrões atuais, era um homem meio que
vencido pela vida. Já há algum tempo, ao contrário do que sempre foi, tudo o
que ele fazia era feito com dificuldade e não lhe trazia prazer algum - seu
trabalho, família, finanças, relações. Enfim,
estava meio depressivo. Recentemente, lhe ocorreu que talvez devesse promover
uma grande mudança do seu cotidiano para, quem sabe, reacender o antigo
entusiasmo, alegria pela vida e suas possibilidades.
Naquela noite, quase manhã, ele teve
um sonho muito diferente Sonhou que estava numa sala - que deveria ser a da sua
casa mas não era -, com mais alguém que não identificou, que permaneceu sempre oculto.
Num determinado momento, um homem alto, negro, sério, bem vestido, com um paletó de gola
arredondada onde se destacava um detalhe amarelo, atravessou a sala. Esse homem passou por eles,
sem dar atenção, e se dirigiu para uma porta da sala, e se preparava para abri-la. Luis, ao
contrário do que seria a sua reação normal, e com um tom de voz diferente do
habitual, o questionou com firmeza, mas calmamente:
"- O que o senhor está fazendo aqui?"
O homem apenas o olhou, mas não respondeu. Luis pediu então que ele se retirasse. O homem altivo, mas respeitoso, continuou abrindo
a porta, como fazia quando foi surpreendido. Luis disse:
"- Por aí não! Por aqui.”
E indicou uma outra porta de saída da sala, que dava para um corredor lateral da casa, de serviço. E o homem saiu.
Algumas horas mais tarde, já tinha
saído de casa e estava dirigindo seu carro, numa
estrada, a caminho do trabalho. Num
determinado trecho, como sempre fazia, saiu da estrada e entrou à direita, num acesso exclusivo
para se fazer o retorno, ou para atravessar a pista como pretendia. Na
pista, do lado de onde veio, não havia muito trânsito naquela hora. Do
outro lado, pelo contrário; era intenso. Ficou aguardando um espaço para atravessar.
Nisso, um outro carro que pretendia
fazer a mesma coisa que ele, ao invés de ficar atrás, esperando a sua vez, se
posicionou ao seu lado, lhe impedindo a visão dos veículos que vinham do
sentido oposto.
Ficou meio que indignado; mas, o que
fazer? Ficou aguardando que ele atravessasse, para depois fazer o mesmo. E foi o
que aconteceu. Entretanto, quando chegou do outro lado, percebeu que havia
feito uma grande besteira. Distraído pelo importuno, pelo apressado, atravessou olhando
apenas para a pista contrária, movimentada, e não para aquela de onde tinha vindo. Antes de cruzar a
pista movimentada, necessariamente atravessou a outra, sem olhar... Naquele
momento, por que não, poderia estar passando um outro veículo, que poderia ter
batido na sua lateral esquerda, em alta velocidade. Aquilo teria sido desastroso,
literalmente. Sentiu então aquele arrepio que se sente quando nos conscientizamos
de que, por pouco, escapamos de um grande perigo.
Realmente, aquela poderia ter sido a sua última viagem! Mais
tarde refletindo, relacionou esse fato anormal - pois sempre foi um motorista hábil, prudente, atento
-, com o sonho que tivera naquela madrugada.
Aquele homem estranho poderia ser a própria ‘Morte’, ou seu representante. Porém, ele não concluiu o que tinha vindo fazer. Alguém, através dele (Luis), não aceitou; lhe informou que ainda não era a hora.
Pensando nisso, resolveu aceitar a
oportunidade e aproveitar melhor a vida adicional que lhe foi concedida. Algum propósito haveria para ele ter sido poupado.
Talvez lhe coubesse ainda realizar alguma coisa importante, para ele mesmo ou
para alguém.
Desse dia em diante, passou
a observar melhor tudo com o que se deparava no seu dia a dia, e a tentar descobrir o que
de bom existia em cada pessoa, nos acontecimentos, na beleza da natureza, nas
obras de arte,...
Em tudo sempre existe algo de bom, mas raramente evidente. E, para muitas pessoas, como para ele anteriormente, acabavam por passar despercebidas.
Em tudo sempre existe algo de bom, mas raramente evidente. E, para muitas pessoas, como para ele anteriormente, acabavam por passar despercebidas.
"Se procurar bem você acaba encontrando Não a explicação (duvidosa) da vida, Mas a poesia (inexplicável) da vida."
(Carlos Drummond de Andrade, em 'Corpo', 1984)
(JA, Ago14)