Regime político sempre em construção
No Brasil do século 21, a democracia ainda vive sob ameaça. Seja por interferências políticas das Forças Armadas, seja por ataques recorrentes de detentores do poder às instituições.
Um dos pilares do mundo
Ocidental, como garantidora de liberdades e promotora de direitos, a democracia
retrocedeu recentemente em diversos países.
A seguir é explicado do que
se fala quando o assunto é democracia, as origens desse modelo, a história dele
no Brasil, os abalos que ele sofre atualmente, e as razões para preservá-lo.
O que é democracia
A democracia é um regime de
governo baseado na ideia de igualdade entre todos os cidadãos, e no direito de
cada um de influir sobre as decisões coletivas. Dessa forma, aqueles que se
tornam governantes, ganhando poder decisório sobre a vida dos demais, atuam
como representantes destes, e não dos próprios interesses.
Ideal civilizatório, a
democracia é tolerante a renovações e, portanto, não tem um conceito fechado.
Estudiosos do assunto definem, no entanto, alguns fatores que devem ser
avaliados quando se analisa o grau de democratização de uma sociedade. O
cientista político americano Robert Dahl, por exemplo, propõe os seguintes:
-
representantes escolhidos em eleições livres
-
eleições periódicas para que representantes mal avaliados possam ser
removidos do cargo pacificamente
-
voto universal , independentemente de gênero, de renda ou de qualquer
outro fator que coloque cidadãos em castas diferentes
-
liberdade de expressão , de forma que o debate público possa servir
como controle efetivo da atuação governamental e das políticas públicas
-
liberdade de imprensa e outras fontes de informação para além das
oficiais
-
liberdade de associação em partidos políticos ou qualquer outra forma
de agremiação
Quem criou a democracia
A democracia é uma construção
coletiva com raízes históricas que remontam à Antiguidade Clássica grega e,
séculos depois, às Revoluções Inglesa, Americana e Francesa.
Ainda que antropólogos
descrevam experiências de participação coletiva em outras sociedades antigas,
foram os gregos que, no final do século 6 antes de Cristo, implantaram um modelo de governo em
Atenas baseado na ampliação da participação popular, e inventaram termos (e conceitos)
como ‘politiké’ e ‘demokratía’ (ou governo do povo, governo de muitos) para
conceber a nova realidade em termos teóricos.
‘Democracia’ se contrapunha à
‘oligarquia’, ou ‘governo de poucos’, como se estruturava a administração em
Esparta, onde proprietários de terra guerreiros dominavam a política, e
restringiam o direito de falar em praça pública. A democracia antiga, portanto,
significava o seguinte, segundo André Singer, Cicero Araujo, e Leonardo
Belinelli:
‘O autogoverno do povo, no
qual todos os grupos sociais livres, independentemente de riqueza e status,
estavam credenciados a participar diretamente das decisões comuns’. (definição da democracia antiga em ‘Estado e
democracia: uma introdução ao estudo da política’)
A possibilidade de o povo se autogovernar
e foi possível em razão da pujança comercial dos portos de Atenas, que resultou
na ampliação das classes populares urbanas e, consequentemente, no ganho de
força política para essas pessoas. Convulsões sociais quebraram o domínio
político das elites, num processo que incluiu governos autoritários das classes
mais pobres.
Após a democracia ser
estabelecida, a Assembleia governativa (‘Ekklesia’) era plural, e permitia que todos os participantes
pudessem expor seus pontos de vista. Os votos eram individuais e tinham todos o
mesmo peso na deliberação coletiva. Embora predominantemente de elite, as
lideranças políticas se viam obrigadas a ouvir e convencer os mais pobres.
A ciência política destaca,
porém, que os grupos sociais participantes do autogoverno tinham de ser homens
livres. A democracia ateniense excluía mulheres, e convivia com o regime
escravocrata que pautava as sociedades antigas, excluindo também os escravos da
noção de povo. A contradição grega expõe, aliás, uma questão fundamental das
democracias: definir quem compõe o ‘demos’.
Uma outra configuração do
mundo antigo que permitia certo grau de participação popular na política era o
da ‘república’ de Roma (res publica, em
latim, significa ‘coisa pública’). O
modelo, no entanto, combinava essa participação com a preservação do poder de
mando das oligarquias. Nas assembleias populares, por exemplo, o voto era
contado por estrato econômico. Atualmente, ‘república’ designa uma forma de
governo em que a classe política é representante do povo (diferentemente de monarquias, por exemplo), enquanto democracia é um tipo de regime de governo (em contraposição a autocracias, por exemplo).
A democracia ateniense, no
entanto, foi perdendo força conforme o próprio império de Atenas se desgastava
em guerras com outras cidades-Estados. No século 5 antes de Cristo, com o controle
de Atenas pelas tropas de Filipe da Macedônia, o ‘governo do povo’ chegou ao
fim. Roma também caiu naquela época, e a organização política da Europa se
reconfigurou por completo.
A recuperação das bases
democráticas só aconteceria muitos séculos depois, com revoluções nos séculos 17 e 18 que
difundiram ideias constitucionalistas e republicanas pelo mundo, e
transformaram a democracia num ideal civilizatório.
Na parcela final desse
interregno de mais de 2.000 anos, o mundo viveu a criação, sob monarquias
absolutistas, dos Estados nacionais modernos, pondo fim aos séculos de
descentralização do poder entre os senhores feudais da Idade Média, e
desenvolvendo as noções de soberania (poder
de mando sobre uma sociedade) e de
representação parlamentar.
As Revoluções
Inglesa
No século 17, os ingleses
conseguiram impor limites ao poder do rei, transformando a monarquia
absolutista em parlamentarismo monárquico constitucional. O processo, que
mobilizou por décadas disputas de classe, questões dinásticas, e rivalidades
religiosas, passou por guerra civil, proclamação republicana, ditadura militar,
restauração monárquica e, enfim, retomada dos conflitos contra o rei, até que
uma Declaração de Direitos, uma espécie de Constituição com garantias para os
cidadãos diante do Estado, foi aprovada em 1689. O Parlamento também ganhou o protagonismo político.
Foi nesse período que o filósofo John Locke desenvolveu suas teses sobre o
direito de cidadãos destituírem governantes que não os atendessem em seus
direitos – o que posteriormente passou a se chamar Estado de direito.
Americana
Trata-se do processo de
constituição dos Estados Unidos como uma república federativa soberana. Após se
declararem livres em 1776, e vencerem a guerra de independência contra a
ex-metrópole, as ex-colônias britânicas elaboraram em 1787 uma
Constituição unificada, estabelecendo como princípios a igualdade entre os
cidadãos (mas sem acabar com a
escravidão), e a ideia de classe política
como representante eleita do povo.
Os constituintes, entre os
quais nomes como James Madison, Benjamin Franklin e George Washington, também
criaram um novo sistema de governo, o presidencialismo, e instituíram a divisão
tripartite do Poder entre Executivo, Legislativo e Judiciário – com mecanismos
de freios e contrapesos entre eles, para evitar o abuso e a opressão das
maiorias contra minorias políticas. Incluiu-se aí a criação de uma Suprema
Corte, para julgar se as ações dos demais Poderes estão de acordo com a
Constituição, que passaria a vincular todo o ordenamento jurídico americano.
Francesa
Numa revolução que juntou
nobres e camadas populares contra a monarquia, os franceses conseguiram
pressionar o rei Luís 16 e, em 1789, aprovar a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, com garantias jurídicas fundamentais para os cidadãos, vistos como
todos iguais entre si.
Em 1781, foi
promulgada também uma Constituição, limitando o poder do monarca, e atribuindo
a uma assembleia de representantes do povo a centralidade do governo (mas deixando o direito de voto restrito a um grupo de
cidadãos).
Em 1792, um grupo
de plebeus conhecido como ‘sans-culottes’, derrubou a monarquia, e instituiu
uma república com voto universal masculino, a partir de nova Constituição. Na
fase mais radical da revolução, os chamados jacobinos, liderados por
Robespierre, tinham uma agenda ainda mais democratizante, focada nos mais
pobres. A crise econômica e a perda de apoio popular inviabilizaram o avanço do
projeto, mas as novas ideias mudaram o mundo para sempre.
O ganho de escala
Ao longo do século 19,
reivindicações das classes trabalhadoras e ideias socialistas impulsionaram
mudanças legislativas para que as camadas populares fossem incluídas na
política, podendo, não apenas votar, mas também se candidatar aos cargos
públicos.
Surgiram então os partidos de
massa, com atuação programática, e candidatos definidos com participação da
militância de cada agremiação. A democracia moderna ganhou escala, tornando-se
o que a ciência política chama de democracia de partido.
Ainda assim, muitas pessoas
continuavam excluídas da vida política institucional. Dali em diante, diversos
grupos tiveram de se mobilizar, como nos movimentos feministas e nos movimentos
negros, para que a própria democracia se democratizasse.
O voto feminino, por exemplo,
foi instituído num país, pela primeira vez, só no final do século 19 e ainda assim
demorou décadas a se espalhar pelo mundo. Até hoje, diversos países precisam de
ações afirmativas, como cotas de candidaturas e reservas de cadeiras
parlamentares, para corrigir a ausência histórica de mulheres e negros nas
cúpulas dos Poderes.
As disputas pelo ganho de
escala da democracia foram intensas, inclusive no âmbito das formulações
teóricas. Foi só na segunda metade do século 20 que a democracia nos moldes
liberais se consolidou como um valor universal, compartilhado por correntes
políticas de direita e de esquerda.
Quando a democracia se consolidou no Brasil
As primeiras votações no
Brasil, para assembleias locais, aconteceram já no século 16, no início da
colonização portuguesa. Mas o direito ao voto era limitado a homens livres,
católicos, e proprietários.
Uma eleição nacional só
ocorreu em 1821, quando a população escolheu, de forma indireta,
escalonada em quatro graus, e sem voto secreto, quem seriam os deputados que
representariam o Brasil em Lisboa, na primeira Assembleia Constituinte do
império português.
Um sistema de voto indireto e
aberto foi mantido depois da Independência brasileira, em 1822. Pela
Constituição imposta por dom Pedro 1º, em 1824, as votações para deputados e a formação de lista
tríplices para senadores vitalícios (nomeados
ao final pelo imperador) se davam em dois
graus, cada um exigindo uma renda anual mínima como critério de participação.
Para ser candidato, a renda exigida era maior ainda.
Além da renda, para o chamado
voto censitário, as regras eleitorais também estabeleciam restrições à
participação para negros libertos, e para homens que já tivessem sido
condenados por crime. Mulheres não podiam votar.
Em 1881, quando já
era alto o número de negros livres, numa sociedade ainda escravocrata, a Lei
Saraiva proibiu analfabetos de votar, e apertou a checagem da renda dos
eleitores. O voto ficou restrito a menos de 2% da população.
A ampliação do direito ao voto
Com a Proclamação da
República, em 1889, a exigência de renda mínima acabou, mas a exclusão
de mulheres e de analfabetos foi mantida. O voto continuava muito restrito.
Além disso, diferentes mecanismos debilitavam a legitimidade do resultado
eleitoral.
Institucionalmente, havia uma
Comissão de Verificação de Poderes, responsável por avaliar a regularidade das
candidaturas vitoriosas. Também conhecida como degola, a comissão acabava
anulando vitórias que não interessassem à classe política já no Poder.
Práticas de mandonismo também
eram abertamente disseminadas. Num sistema que depois a historiografia chamou
de coronelismo , donos de terras se tornavam lideranças locais e, com o aval do
governador e, em última instância, do governo central, controlavam, por meio da
intimidação, da violência, e de compra de votos, a escolha eleitoral das
camadas mais vulneráveis. Dessa forma, garantiam o apoio aos chefes dos
Executivos estadual e federal, e ao mesmo tempo mandavam na política local.
Foi apenas em 1932, já no governo de Getúlio Vargas, que o movimento feminista conseguiu colocar no Código Eleitoral aprovado o direito das mulheres de votar. O sigilo do voto foi outra conquista da nova legislação. Analfabetos só voltaram a poder votar em 1985 , com uma emenda à Constituição de 1967.
As ditaduras
No século 20, dois
períodos interromperam a construção democrática. O primeiro deles durou de 1937 a 1945, quando
Getúlio Vargas, que tinha chegado à Presidência em 1930 por meio de
um golpe, implantou a ditadura do Estado Novo.
Outra ditadura durou 21 anos e foi
comandada pelas Forças Armadas. Em 1964, os militares colocaram tanques nas ruas e derrubaram
o então presidente João Goulart, que havia sido eleito democraticamente. Nos
anos seguintes, o regime recrudesceu, a partir de disputas entre os próprios
generais.
Durante a ditadura militar,
não houve eleições para presidente. O Congresso só podia funcionar com dois
partidos (os demais foram cassados) e, mesmo assim, foi fechado duas vezes.
Imprensa e artistas tinham de
submeter seus trabalhos à censura antes da publicação. Censores acompanhavam
também o que era dito dentro das salas de aula das universidades. O que não
interessava ao governo que fosse de conhecimento público era vetado.
Pessoas eram presas sem saber
o porquê e não podiam ter suas prisões avaliadas pelo Judiciário (o Ato Institucional nº 5, de 1968, acabou com o
direito ao habeas corpus). A tortura, o
assassinato e o desaparecimento forçado viraram mecanismos institucionalizados
de repressão a opositores.
Enfrentando a violência da
repressão, muitas pessoas arriscavam a própria liberdade, e até mesmo suas
vidas, na tentativa de denunciar o regime militar e restabelecer a democracia.
A resistência à ditadura veio
tanto de movimentos armados quanto de ações pacíficas. Ela se materializou
tanto em episódios históricos, como o movimento das Diretas Já, quanto na
resiliência cotidiana de quem continuou a ensinar, informar, ou se expressar,
apesar dos riscos.
Durante esses dois períodos
ditatoriais, pelo menos 434 pessoas que estavam detidas, sob a responsabilidade
do Estado brasileiro, foram mortas ou desapareceram , segundo os documentos da
Comissão Nacional da Verdade.
A redemocratização
Em 1985, um civil
voltou a presidir o país, mas ainda por escolha dos militares. Com a
Constituição de 1988, os brasileiros voltaram a ter direito a eleições
livres e diretas para todos os cargos representativos; a política voltou a ser
multipartidária; a independência de cada Poder da República, Executivo,
Legislativo e Judiciário, foi reinstituída, e direitos individuais e sociais
foram expandidos.
A partir de então houve
importantes avanços democráticos, como a maior presença de negros, indígenas e
mulheres nas universidades, no mercado de trabalho, e na política. Também
aumentaram mecanismos de controle dos governantes, incluindo regras de
transparência, criação e fortalecimento de órgãos de investigação, e
desenvolvimento das capacidades de uma imprensa livre.
Ainda assim, o Brasil seguiu
como um dos países mais economicamente desiguais do mundo, comandado por uma
classe política ainda pouco diversa, e marcado pelo racismo e pela misoginia,
entre outros aspectos de um estoque autoritário . A igualdade jurídica não
virou prática . As ideias de democracia racial, e de igualdade entre cidadãos e
cidadãs, não são realidade.
O capítulo da ditadura
militar na história nacional tampouco foi totalmente virado. A Lei de Anistia
de 1979, considerada válida pelo Supremo Tribunal Federal em 2010, impediu a
punição dos crimes cometidos, enfraquecendo também o debate público sobre as
causas e as consequências de uma ditadura.
Mesmo assim, nos anos 1990 e 2000, havia na
sociedade brasileira, inclusive entre acadêmicos, uma percepção de que a
democracia do país estava consolidada . A agenda política do Brasil passou a
poder se ocupar de outros temas prioritários, como a estabilidade econômica, e
a inclusão social. O país avançou nos seus índices de desenvolvimento.
Uma série de fatos da
política partidária recente, contudo, fez essa percepção desmoronar. O Brasil
iniciou sua trajetória de queda nos rankings globais de avaliação da
democracia.
Como a democracia é ameaçada no século 21
Analisando a trajetória dos
regimes políticos desde o século 18, há uma clara tendência histórica de democratização
pelo mundo. No entanto, a população mundial cresceu mais rápido do que a
democracia se espalhou.
Além disso, retrocessos
recentes mostraram que o progresso político contínuo não deve ser tomado como
pressuposto. A Índia, por exemplo, com seu 1,4 bilhão de habitantes, deixou em 2019 de ser uma
democracia, segundo diversos índices internacionais.
O nível de democracia do mundo, que registrou seu ápice histórico dez anos atrás, em 2012 regrediu, e está atualmente no patamar registrado em 1989, segundo o Instituto V-Dem (Varieties of Democracy).
30% da população mundial vivia sob
democracias (eleitorais
ou liberais) em 2021; em 2011, esse percentual era de 51%
As explicações para esses
retrocessos são múltiplas e variam de acordo com as particularidades do
contexto político de cada país. Mas alguns fatores ajudam a explicar, pelo
menos, por que tantos líderes autoritários foram eleitos ou ganharam mais
poder, sobretudo a partir de 2016.
Primeiro, há em vários países
a histórica crise de representação. O próprio modelo de partidos, que
fundamenta a democracia desde o século 19, está sendo questionado, dada a falta de
identificação dos eleitores com as agremiações existentes.
Questões como crises
econômicas, tendências de espetacularização da política, e desafios cada vez
mais complexos, num cenário internacional cada vez mais integrado, ainda
agravam o descontentamento com a política em geral.
Além disso, do uso cada vez
mais intenso das redes sociais, onde algoritmos premiam conteúdos polêmicos, e
retroalimentam visões extremadas, emergiram dois fenômenos globais que corroem
os processos de deliberação numa democracia, impedindo a formação de consensos
e minando a coesão social:
o
a polarização da política tóxica, e o
o
amplo uso da desinformação como arma política,
tudo isso alimentado por
figuras políticas, e partidos interessados na desconstrução democrática.
Mergulhados numa polarização
extremada, grupos políticos em dezenas de países – independentemente de
desempenho econômico ou nível de democracia, segundo o V-Dem – passaram
a declarar que não reconhecem legitimidade em grupos opositores, vistos como
ameaças existenciais, a serem eliminadas.
Discursos de ódio
proliferaram, teorias da conspiração e de pânico moral se difundiram, e
soluções drásticas, atropelando os princípios do Estado democrático de Direito,
ganharam espaço na cena política. Uma série de populistas autoritários
aproveitaram a onda para chegar ao poder. Defensores de pautas liberais para a
economia pegaram carona, aproveitando o ambiente de tensionamento político para
fazer avançar suas agendas.
Para expandirem seus poderes
autocráticos, no entanto, num mundo em que o compromisso com a democracia está
consolidado nos mais variados tratados internacionais, com previsões de duras
sanções contra ditaduras, esses novos líderes tiveram de encontrar novas formas
de atuar.
Eleitos regularmente, eles
passaram a adotar retórica e prática que, mesmo sem romper explicitamente com o
regime democrático (sem o fechamento
drástico de instituições, por exemplo),
minam constantemente a legitimidade de pilares democráticos, num processo de
erosão gradual da democracia por dentro dela mesma.
Estão no rol desse tipo de
atuação o ataque à legitimidade de opositores e à autoridade de órgãos do
sistema de Justiça, e a intimidação à imprensa. Retóricas voltadas para o
insulto e a intimidação, especialmente contra minorias e rivais políticos,
viraram parte do dia a dia, num processo de naturalização da violência
política.
A nova estratégia de
autocratização foi amplamente analisada por autores como os professores da
Universidade Harvard (EU) Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, em ‘Como as
democracias morrem’, e o professor da Universidade Cambridge (Reino Unido)
David Runciman, em ‘Como a democracia chega ao fim’.
Nos dois livros, a atuação do
republicano Donald Trump revela uma espécie de cartilha da autocratização.
Eleito em 2016 para a Presidência dos Estados Unidos, um país visto
por muitos como modelo democrático, Trump fez sua campanha e governou o mandato
inteiro alimentando a desinformação, e a inflamação dos ânimos políticos.
Trump acabou derrotado na sua tentativa de reeleição em 2020, mas deixou na sociedade americana um legado de polarização e desconfiança democrática que segue presente.
Adam Przeworski, da Universidade de Nova York (EU), destrincha também a erosão democrática gradual ocorrida na Hungria de Viktor Orbán, na Polônia de Jaroslaw Kaczinsky, na Turquia de Recep Tayyip Erdogan, e na Tailândia de Prayut-Chan-Ocha – casos que o professor chama de ‘autoritarismo sub-reptício’ (ou disfarçado).
Przeworski destaca que esse
tipo de atuação evita o acionamento de instituições de controle, já que não
deixa sinais claros de ataques à democracia.
Em 2022, no
entanto, o relatório anual do Instituto V-Dem
(Varieties of Democracy) mostrou, não
apenas uma forte onda global de autocratização, como também uma mudança nas
tendências autoritárias pelo mundo em 2021. Vinculado à Universidade de Gotemburgo (Suécia), o
instituto conta com a colaboração de milhares de especialistas pelo mundo para
a elaboração de suas análises.
O documento aponta que
líderes autocráticos estão tomando ações mais ousadas contra a democracia, na
linha que projeta autores como Wendy Brown, da Universidade Berkeley (EU), Pierre
Dardot e Christian Laval, da Universidade Paris-Nanterre (França), e
William I. Robinson, da Universidade da Califórnia (EU).
A nova tendência se
classifica assim porque rompe com o padrão estabelecido em anos recentes de
erosão lenta e gradual dos pilares democráticos. No século 21, os golpes de
Estado nos moldes clássicos, com a tomada violenta do poder, estavam em
declínio. Em 2021, porém, seis países passaram por processos dessa
natureza.
Além disso, medidas contra
instituições fundamentais da democracia ficaram mais comuns nos países que
estão se autocratizando. O V-Dem destaca, entre elas, os ataques à autonomia de
instituições responsáveis pelo processo eleitoral.
Para piorar, as mobilizações
populares a favor da democracia estão diminuindo pelo mundo, enquanto as
mobilizações que buscam dar legitimidade a autocratas estão aumentando, segundo
o relatório.
Segundo o V-Dem, no último
século, quase 80% dos países que eram democracias, e vivenciaram
processos de autocratização na última década, acabaram sem democracia – o que
mostra a dificuldade de conter investidas autocráticas depois que elas começam
a ganhar força.
Onde a democracia é atacada, ou sequer existe
Há diversas metodologias para
classificar os regimes políticos dos países. Uma das mais reconhecidas no mundo
é a do V-Dem, que usa as seguintes categorias:
- Autocracias fechadas: não há sequer eleições livres e multipartidárias
- Autocracias eleitorais: há eleições, mas restrições a liberdades, como a de associação ou a
de expressão, comprometem a legitimidade dos pleitos
-
Democracias eleitorais: há eleições multipartidárias legítimas, livres e justas, mas a
garantia de direitos, e o funcionamento institucional ainda têm problemas
significativos
- Democracias liberais: além de eleições, cidadãos também têm assegurados direitos
individuais, direitos para a proteção de minorias, e igualdade perante a lei,
enquanto o poder Executivo sofre o devido controle pelos poderes Legislativo e
Judiciário
Segundo o instituto sueco,
com base em dados de 2021, o regime mais comum no mundo é o das autocracias
eleitorais, onde vivem 44% da população mundial. Apenas 13% da população
mundial vivem sob democracias liberais, em apenas 34 países. Nas
democracias eleitorais, vivem 16%, em 55 países. A democracia, aliás, seja ela plena ou
parcial, é realidade da minoria de cidadãos hoje em dia.
Entre as autocracias
fechadas, estão países como: Afeganistão, Arábia Saudita, China, Coreia do
Norte, Cuba, Líbia, e Marrocos.
Classificados como
autocracias eleitorais aparecem, entre outros: Angola, Etiópia, Filipinas,
Honduras, Hungria, Índia, Irã, Nicarágua, Rússia, Sérvia e Venezuela.
Já o rótulo de democracias
eleitorais foi dado para um grupo de países que inclui: África do Sul,
Argentina, Bolívia, Brasil, Indonésia, México, Polônia e Portugal (este na fronteira das democracias liberais).
Têm o selo de democracias
liberais, entre outros países: Austrália, Alemanha, Botsuana, Canadá, Coreia do
Sul, França, Estados Unidos, Japão, Noruega, Reino Unido e Suécia.
Os maiores retrocessos
Em 2021 havia 33 países (36% da população mundial) em processo de autocratização, segundo o V-Dem – um
recorde negativo dos últimos 50 anos que não deixou de fora nem mesmo países da União
Europeia e os Estados Unidos.
Fazem parte do grupo dos que
tiveram medidas autocratizantes mais profundas de 2011 a 2021, países tão
expressivos internacionalmente quanto Brasil, Hungria, Índia, Polônia, Sérvia,
e Turquia.
Entre as ações ‘autocratizantes’,
o documento destaca as tentativas do Executivo de controlar o sistema de
Justiça, de cercear a liberdade de imprensa, e de atacar críticos da sociedade
civil, além de movimentos como prender candidatos às eleições, ou mudar as regras
eleitorais.
A democracia também é minada,
segundo o relatório, por comportamentos de lideranças políticas e de seus
partidos envolvendo falta de comprometimento com o processo democrático,
desrespeito a direitos fundamentais de minorias, estímulo à demonização de opositores
políticos, e aceitação da violência política.
A Hungria, por exemplo, era uma democracia até recentemente, mas, em 2022 foi considerada uma autocracia eleitoral. Governado desde 2010 pelo partido de extrema direita Fidesz (Partido União Cívica Húngara), o país se tornou um caso emblemático para os estudiosos do autoritarismo em razão da estratégia do primeiro-ministro Viktor Orbán de promover uma enxurrada de alterações legislativas para alcançar seus objetivos progressivamente.
Dessa maneira, as investidas antidemocráticas de Orbán, inclusive para restringir a atuação da Corte Constitucional húngara, mantiveram uma fachada democrática, e escaparam ao mecanismos de controle. É o que ficou conhecido academicamente como ‘legalismo autocrático’, na expressão de Kim Lane Scheppele, professora na Universidade Princeton (EU).
O ranking da Unidade de
Inteligência da revista britânica The Economist também afirma que medidas
impostas ao redor do mundo como respostas à pandemia de covid-19 tiveram
exageros, prejudicando o estado da democracia em diversos países. Para o V-Dem, no
entanto, as restrições ligadas à crise sanitária tiveram efeitos diretos
limitados na onda antidemocrática global que já estava em curso. O instituto
afirma que a maioria das violações a direitos ocorreu em países autocráticos.
Os problemas brasileiros
O V-Dem classifica
o Brasil como uma democracia eleitoral, e aponta o país como um dos que mais
retrocederam na escala democrática na última década. O relatório atribui a
queda da avaliação brasileira a fatos como:
o
O estímulo de Bolsonaro a agendas antidemocráticas de seus apoiadores,
incluindo pedidos por um golpe militar e pelo fechamento dos demais Poderes
o
A petição apresentada pelo presidente ao Senado para que o ministro
Alexandre de Moraes, que relata inquéritos contra Bolsonaro e aliados,
fosse removido do Supremo Tribunal
Federal
o
A militarização em larga escala do governo Bolsonaro
o
As ações do chefe do Executivo para disseminar desconfianças sobre o
sistema eleitoral
Por outro lado, o documento
sueco ressalta a resistência do Supremo aos ataques de Bolsonaro contra o
sistema eleitoral do país.
Fatos antidemocráticos
semelhantes também foram ressaltados pela The Economist, que classifica o
Brasil como ‘flawed democracy’ (democracia
falha). A análise britânica destacou que
Bolsonaro chegou a dizer, em 2021, que não respeitaria o resultado da eleição
presidencial de 2022 – ameaça que continua de pé às vésperas da votação.
Rankings especializados em
áreas temáticas apontam ainda outros pontos de retrocesso democrático sob
Bolsonaro. O ‘Scholars at Risk’ denuncia o comprometimento da liberdade
acadêmica do país, com tentativas do governo de controle e intimidação a
reitores, professores universitários, e pesquisadores.
Avaliações como a dos ‘Repórteres sem Fronteira’ também atestam o comprometimento da liberdade de imprensa, com diversos ataques do presidente e de seus apoiadores a profissionais do ramo, especialmente mulheres. As pessoas que trabalham com a defesa dos direitos humanos também passaram a ser atacados pelo governo, e ficaram mais expostos à violência sob a gestão Bolsonaro.
Segundo a Economist, o
compromisso latino-americano cada vez mais fraco com uma cultura política
democrática fomentou os regimes autoritários da Nicarágua, e de Nicolás Maduro
na Venezuela, e deu espaço para o crescimento político de ‘populistas iliberais’
em outros países. Nessa categoria, a revista símbolo do liberalismo no mundo
põe Bolsonaro, Andrés Manuel López Obrador (México), e Nayib Bukele (El
Salvador).
Por que a democracia é o melhor sistema político
Por ser um regime aberto a
críticas e divergências, a democracia se caracteriza por disputas constantes, o
que por vezes gera desgastes no próprio tecido social.
O compartilhamento de poder
entre diferentes instituições, e a necessidade de formação de consensos, pode
obstruir a resposta do poder público às necessidades da sociedade. A troca
periódica de representantes pode dificultar a continuidade de políticas
públicas.
Mesmo assim, a democracia foi
capaz de se provar no século 20 como o melhor regime político já experimentado,
derrotando, ainda que não definitivamente, correntes do pensamento político
antidemocrático .
Especialmente depois da
Segunda Guerra Mundial, quando o nazismo mostrou ao mundo as consequências de
uma ideologia de exclusão, democracias ocidentais experimentaram três décadas
de ampliação de políticas públicas para setores da sociedade historicamente
negligenciados. As melhorias se refletiram nos índices de desenvolvimento
desses países.
São vários os estudos que
analisam as trajetórias de desenvolvimento de diferentes países e conseguem
associar melhores índices de democracia a:
o
Crescer mais economicamente
o
Ter maior estabilidade econômica ao longo das décadas
o
Oferecer maiores incentivos para que as pessoas cursem o ensino secundário
o
Investir mais recursos públicos em
educação
o
Ter menos conflitos internos e
guerras externas
o
Comprometer-se mais com o enfrentamento às mudanças climáticas
o
Apresentar melhores índices de
expectativa de vida e de mortalidade infantil
o
Desfrutar de maior participação de
mulheres na política
o
Garantir assistência social mais robusta aos mais vulneráveis
o
Diminuir os índices de
corrupção
o
Fornecer mais e melhores
informações
Todos esses fatores, em última instância, melhoram a qualidade de vida da população. Com mais transparência e acesso a informações oficiais confiáveis, por exemplo, especialistas podem monitorar mais eficientemente as políticas públicas, imprensa, e organizações da sociedade civil podem fiscalizar melhor a atuação dos políticos, prevenindo e denunciando casos de corrupção, e empresários e investidores podem tomar decisões mais acertadas.
Não à toa, a democracia
passou a ser uma exigência internacional, dos mais diversos setores, da direita
à esquerda do espectro ideológico. Diversas correntes do pensamento político
elaboram agora, no século 21, como aprofundá-la.
Imagem em Destaque: ‘A Era de Péricles’, pintura de Phillipp Von Foltz, 1853, retratando a democracia ateniense.
Fonte: Isabela Cruz | Nexus, Dez23
(JA, Set25)