O tema de pesquisa do
professor Alberto Grandi causa tanta polêmica na Itália que ele acumula uma
enxurrada de mensagens ofensivas recebidas por e-mail, além de comentários
indignados de políticos nacionalistas.
Um dos auges dos ataques foi,
no começo do ano passado, após entrevista em que ele comentava as origens da
pizza e do espaguete à carbonara, dois ícones da cozinha italiana.
A dura verdade que irritou
parte dos italianos é que, apesar de serem consideradas típicas da península,
essas receitas são menos tradicionais do que se imagina. Nos dois casos, foram
fortemente influenciadas pelos Estados Unidos, e se firmaram no panteão
gastronômico nacional somente no século 20.
‘As reações, em média, são
agressivas. Os casos mais clamorosos são o carbonara e a pizza, porque viraram
elementos identitários de Roma e Nápoles’, diz Grandi, professor de história da
comida na Universidade de Parma. ‘Mas o carbonara [romano] é dos anos 1990, não
estamos falando da Idade Média. E a pizza que comemos hoje é a americana’.
São constatações assim,
fundamentadas com o rigor da pesquisa acadêmica, e com tiradas bem-humoradas,
que Grandi escreve no livro ‘As Mentiras da Nonna - Como o Marketing Inventou a
Cozinha Italiana’, que acaba de ser lançado no Brasil pela editora Todavia.
Na publicação, Grandi
destrincha os acontecimentos históricos e socioeconômicos que embalaram a
criação do mito da cozinha italiana que conhecemos hoje, um dos maiores soft
powers do país.
Ele conta que o molho carbonara, na versão com ovos e bacon, nasceu no fim da Segunda Guerra Mundial com ingredientes americanos, fornecidos pelas tropas de ocupação —os ovos eram em pó. Nada a ver com a lenda de que era uma refeição de quem trabalhava com carvão (‘carbone’) no século 18.
‘O espaguete à carbonara não é nada além de um típico café da manhã americano, com a adição da pasta’, escreve Grandi. A receita aclamada hoje, que leva papada ou bochecha (‘guanciale’) de porco e queijo pecorino, teria virado ‘autêntica’ há 40 anos.
Sobre a pizza, Grandi escreve
que se trata de uma comida de rua presente em boa parte dos países do
Mediterrâneo, em diferentes versões e nomes —o pão pita é uma delas. ‘Aquele
disco de pão, com algo em cima para o tornar mais rico e saboroso, não é
exclusividade italiana nem napolitana’, afirma.
O autor explica que o
verdadeiro queijo parmeggiano é feito, como antigamente, somente em Wisconsin,
nos EUA, e que o panetone milanês nasceu primeiro pela iniciativa da
indústria, nos anos 1920, para depois ganhar atenção da produção artesanal,
como é valorizado hoje. Ganham comentários detalhados também o vinagre
balsâmico de Módena, o chocolate de Módica, e o presunto cru de Parma.
O livro desmonta a ideia,
sustentada por muitos italianos, de que a cozinha italiana tem raízes medievais
e no Renascimento, e que foi difundida mundo afora pelos emigrados. A real é
que aquilo que se entende hoje por culinária italiana, defende o autor, que surgiu
depois dos anos 1970, como um produto econômico e cultural, resultado de
um processo artificial.
Sobre os emigrados, sim, eles
tiveram papel fundamental, mas na direção contrária: eles construíram no
exterior, especialmente na América do Norte, várias das características dessa
cozinha que, mais tarde, foram levadas de volta por eles ao país natal, com
novos ingredientes e técnicas. Foi nesse processo que a pizza ganhou molho de
tomate por cima da massa.
Antes de saírem, esses
italianos comiam basicamente polenta de milho, no norte, e vegetais, ao sul.
Longe, portanto, de ser uma mesa exuberante com uma infinidade de gostosuras
regionais. Foi em terras estrangeiras que eles descobriram a carne, no Brasil e
na Argentina, e os ovos, o leite e os queijos, nos EUA.
A influência dos emigrados é
um dos argumentos principais de Grandi para explicar como se deu a construção
da atual identidade gastronômica italiana. ‘Eles levam para as cidades do sul e
do norte da Itália dinheiro, novos produtos, e uma nova mentalidade’.
Se o vaivém migratório foi
algo espontâneo, o que aconteceu a partir dos anos 1970, e que
acabou por formar o mito da cozinha italiana, foi mais calculado. Após o boom
econômico do pós-Segunda Guerra, que transformou os hábitos da população, com
eletrodomésticos e comidas prontas, algumas crises se abateram sobre a Itália.
Nesse período, o país passou
a questionar o modelo de desenvolvimento baseado na grande indústria, e começou
a se adaptar em sistemas de pequenas empresas, com destaque para turismo e
enogastronomia.
O movimento apostava na força
do ‘made in Italy’ e na tradição, ainda que inventada. As marcas de tutela,
como os selos de denominação de origem controlada, tornaram-se bandeiras de
identidade.
Não existe uma cozinha italiana, diz Grandi. ‘Existe uma cozinha na Itália, nos EUA e no Brasil. Não há nenhum motivo para considerar a da Itália mais original do que a cozinha italiana do Brasil’, diz. As milhares de pizzarias em São Paulo são prova disso.
Fonte: Michele Oliveira | FSP
(JA, Ago24)