Imunizante foi trazido de Lisboa
Escravos viabilizaram 1º plano de vacinação do Brasil
Foi aplicado dentro das igrejas
A varíola era uma
infecção que assustava, e muito, no começo do século 19 - quem contraía
a doença contagiosa tinha 30% de chances de
morrer. Um grupo de comerciantes baianos resolveu se unir para trazer ao Brasil
a solução que já vinha sendo utilizada com sucesso na Europa: a vacinação.
A ideia tinha sido desenvolvida por um médico britânico Edward Jenner, 1749-1823, em 1796. Ele descobriu que os que lidavam com gado tinham resistência à doença — isso se devia à infecção prévia deles com uma versão atenuada do vírus, justamente a que acometia os bovinos. Teve, então, a ideia de inocular esse material, extraído do pus dos que desenvolviam a forma leve da doença, em pessoas saudáveis. Estava inventada a vacina.
Nos primórdios, a
imunização ocorria graças a um método chamado de braço em braço. ‘As pessoas
que se vacinavam deveriam retornar após uma semana para que os vacinadores
retirassem parte da secreção da pústula gerada no local da aplicação’, afirma o
historiador Ricardo Cabral de Freitas, pesquisador na Fundação Oswaldo Cruz. ‘Esse
material era utilizado para produzir mais vacinas para outros indivíduos, e
assim por diante’.
Acontece que o
transporte do imunizante também dependia desse processo. E foi o que precisou
ser feito para a chegada da técnica ao Brasil. ‘Os comerciantes baianos que
estavam por trás do empreendimento decidiram importar o ‘pus vacínico’ da
Europa. Mas não deu certo, porque esse insumo perdia a validade depois de 40 dias de viagem
marítima’, diz o pesquisador Paulo Rezzutti, autor de diversos livros sobre o
Brasil pré-republicano.
A solução foi
usar crianças escravizadas. Conforme pesquisa realizada pelo historiador
Fillipe dos Santos Portugal - relatada da dissertação ‘A Institucionalização da
Vacina Antivariólica no Império Luso-brasileiro nas Primeiras Décadas do Século
19’ -, foram
enviados sete meninos e meninas negros como cobaias para trazer a vacina de
Lisboa para a Bahia. Desta forma, o pus pôde ser retirado ainda em alto-mar,
chegando ‘fresco’ ao Brasil.
A partir de 1805, esse mesmo
método passou a ser utilizado para ‘transportar’ o imunizante em terras da
colônia. ‘Ou seja, enviava-se um certo número de indivíduos, geralmente
escravizados, até o local de origem da vacina, e eles eram vacinados braço em
braço, até chegar ao destino’, declara Freitas.
Família Real
Com a
transferência da família imperial para o Brasil, em 1808, uma série de
melhorias acaba sendo implementada no Rio de Janeiro. Em 1811, foi criada a
Junta da Instituição Vacínica da Corte. Segundo afirma o historiador Victor
Missiato, professor do Instituto Presbiteriano Mackenzie, foi uma medida que fez
parte do ‘rol de institucionalizações das políticas’ do período. ‘Nos primeiros
anos da corte portuguesa no Brasil, foram criados os primeiros cursos médicos,
em Salvador e no Rio de Janeiro’, diz ele.
O assunto era
caro ao então príncipe-regente, d. João. Ele havia perdido um irmão, uma irmã,
e um cunhado, em decorrência da varíola. Além disso, seu filho Francisco Antônio
- irmão mais velho de daquele que se tornaria o primeiro imperador do Brasil,
Pedro I - também foi vítima da doença em 1801, aos 6 anos de idade. ‘D. João vivia em um mundo em
que todos à sua volta morriam de varíola’, afirma Rezzutti.
D. João só se
tornaria rei por conta da postura antivacina de sua mãe, d. Maria I. ‘D. José [o irmão que morreu de varíola aos 27 anos] seria o herdeiro do trono, e tinha sido
criado para um dia governar Portugal. Mas a mãe deles, a rainha d. Maria I não quis
vaciná-lo. E ele morreu’, diz o pesquisador. ‘D. João virou o herdeiro e,
quando assumiu como príncipe-regente, foi a favor da vacinação’.
A Junta Vacínica
tinha a missão de promover a vacinação em massa na corte do Rio. E, em seguida,
atuar como um centro difusor do imunizante para outras províncias brasileiras. ‘Procurava-se
tornar o serviço contínuo e padronizar as práticas de vacinação, facilitando o
acesso de um conjunto maior da população’, afirma Freitas.
De acordo com o
pesquisador, a atuação e o alcance do órgão foram irregulares. ‘Se ela teve o
mérito de expandir o acesso à vacina, as dificuldades orçamentárias, a falta de
pessoal, e a adesão irregular à vacinação, foram problemas constantes e
limitaram o alcance da sua atuação’, diz.
Pesquisas em
registros da época mostram que era significativo o número de escravos
vacinados. Isto por duas razões: acreditava-se que o tráfico negreiro era um
dos maiores difusores da doença e, é claro, havia um ‘interesse comercial’. ‘Contribuiria
para conservar os ganhos dos senhores cujos cativos estivessem imunes’, afirma
Freitas.
‘Avacalhar’
É claro que não
era tarefa fácil convencer a população a ser vacinada. Se hoje ainda persiste
um discurso antivacina em alguns setores, é possível imaginar como era 200 anos atrás,
quando o método era uma novidade, e o povo não tinha acesso a conhecimentos
científicos. Rezzutti conta que a Junta Vacínica criou uma estratégia
interessante: transformou as igrejas do Rio em postos de vacinação.
‘A população
acreditava que aquilo era uma coisa de Deus, afinal, se vinha da igreja, tinha
de ser algo bom’, relata. Um desses pontos era a Igreja de Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito, no centro da cidade. Aos domingos, dois médicos
vacinavam os fiéis na hora da missa.
A vacinação,
contudo, era obrigatória. ‘A política de saúde na época estava vinculada à
fiscalização estatal e ao poder de polícia’, contextualiza Missiato. ‘Desse
modo, diversos foram os eventos em que a força do Estado teve que atuar em
forma de multas e até prisões. A política [de vacinação] apresentou instabilidades ao longo do século 19, com momentos de
amortecimento da transmissão e novos surtos.”
Havia fake news,
é claro. Registros da época mostram relatos de incredulidade e boataria
relacionada à imunização. Muitos temiam que o procedimento transmitisse doenças
de bovinos para seres humanos.
E a lenda não era
que o vacinado seria transformado em jacaré, mas sim em vacas. ‘No âmbito mais
popular, houve temores de que a vacina pudesse conferir feições animalescas
para as pessoas, ou avacalhá-las, para usar um termo da época’, afirma Freitas.
(JA, Fev21)