Incomoda o verniz
científico que o Vaticano tenta imprimir aos processos de canonização
Compreendo que organizações
religiosas precisem eleger modelos de vida virtuosa, e mostrá-los
conspicuamente aos fiéis, para que tentem imitá-los. É nesse contexto que se
explicam santos, mártires, ‘stáriets’, taumaturgos e iluminados.
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Irmã Dulce - imagem da brasileira, nova santa, no Vaticano |
Não tenho nada contra a
santificação de Irmã Dulce, que me parece mesmo uma figura simpática. Devo,
porém, dizer que me incomoda o verniz científico que o Vaticano tenta imprimir
aos processos de canonização, vinculando-os a milagres que passam pelo crivo de
comissões de médicos e cientistas, incumbidas de atestar que o fenômeno não tem
explicação natural. Há aí uma confusão epistemológica. Não encontrar uma
explicação, é muito mais uma medida de nossa ignorância do que a certeza de uma
interferência sobrenatural.
Chega a ser suspeito o fato de
que a maior parte dos milagres modernos venha da medicina, campo em que reina a
incerteza. O diagnóstico inicial estava certo?
Componentes psicológicos
influíam no quadro do paciente? Em que medida a remissão de um tumor, por
exemplo —algo que todos os grandes hospitais registram com doentes de todas as
religiões e ateus—, pode ser considerada milagrosa? Por que nunca vimos uma
cura que calaria a boca de todos os céticos, como a regeneração de um membro
amputado?
E, se quisermos levar o
espírito de porco da ciência mais longe, podemos questionar até as motivações
dos santos. Suas boas ações são fruto de altruísmo genuíno, ou apenas um
instrumento para conquistar um lugar no paraíso? Mesmo que descartemos essa
última hipótese, a ciência mostra que ajudar pessoas libera neurotransmissores
que produzem a sensação de bem-estar, o que também pode ser interpretado como
uma motivação egoísta. Isso, é claro, se acreditarmos no livre-arbítrio, sem o
qual não existe santidade, mas que a ciência vê com desconfiança.
É melhor para a religião
manter os santos longe do escrutínio da ciência.
Hélio Schwartsman, jornalista, foi editor de Opinião. É
autor de ‘Pensando Bem…’ | FSP
(JA, Out19)