País teve um boom ferroviário de meados
do século 19 até os anos 1940. Depois, as estradas de ferro passaram a servir
quase que só ao transporte de cargas — e, até hoje, de forma insuficiente e
precária
Naquela noite de 1964, se alguém perdesse o trem saindo às onze da noite do Mercado Municipal, no centro de São Paulo, rumo à Serra da Cantareira, com famosa parada no Jaçanã, não haveria outro amanhã de manhã. Era a última viagem da Estrada de Ferro da Cantareira, que servia parte da zona norte da cidade e do município de Guarulhos. Nos meses seguintes, todo o leito dos trilhos que ligava o mercadão até o pé da Serra da Cantareira seria ‘pavimentado e transformado em avenida’.
As velhas locomotivas a vapor
ainda apitariam por mais um tempo no ramal que saía do mesmo ponto para ir até
Guarulhos, fechado no ano seguinte. No total, a rede das linhas que serviam
essa porção norte da Grande São Paulo chegou a ter 45 estações e paradas,
incluindo um ramal até a base aérea de Cumbica.
Apenas uma década antes, o Brasil comemorava
100 anos desde que a primeira ferrovia havia sido implementada no país, em
1854. Não havia muito o que celebrar: o centenário marcou o início de um
processo de desmonte dos serviços de passageiros, que não tinham investimentos
e vinham perdendo público desde bem antes. Em 1955, seria aprovada uma lei que
autorizava a eliminação de linhas e ramais considerados antieconômicos.
Nas décadas seguintes, foi
aposentada uma grande quantidade de trens, equipamentos, linhas, estações e
empresas, em especial os que serviam cidades menores. Nos sistemas
intermunicipais mais importantes ou nos interestaduais, o uso das ferrovias foi
migrando progressivamente para quase que apenas transporte de carga.
No final dos anos 1990,
quando o transporte de carga sobre trilhos foi inteiramente privatizado, havia
restado ao transporte de pessoas as redes urbanas, um punhado de rotas
turísticas e duas linhas operadas pela Vale do Rio Doce. Em todo o país,
material rodante e equipamento abandonado foram deixados para apodrecer em
depósitos e terrenos com mato alto. Estações de trem se transformaram, nos
melhores casos, em museus e espaços culturais. A maior parte, no entanto, virou
ruína.
Esse cenário no Brasil é
oposto ao de outros países, em que a ferrovia nunca deixou de ser um modal
prioritário para o transporte de pessoas, sempre renovado material e
tecnologicamente e, em muitos casos, receptor de grandes subsídios estatais.
Mesmo nos carrocêntricos Estados Unidos é possível viajar de trem para boa
parte do país. E, na China, são dezenas de bilhões de dólares de aporte anuais
para a malha ferroviária, incluindo o maior sistema de trens de alta velocidade
do planeta, que cobre mais de 27 mil quilômetros.
O preço da dependência
excessiva das rodovias, no aspecto da carga, ficou evidente quando do
desabastecimento geral em supermercados, hospitais e comércios em geral que
resultou da greve dos caminhoneiros, em maio de 2018. O Brasil ficou no 56º.
lugar no ranking mundial de logística do Banco Mundial, em 2018.
Em relação ao transporte de
passageiros, os habitantes do país são privados de ter uma alternativa mais
rápida, segura, confortável e ambientalmente mais limpa para viagens
intermunicipais.
Como chegamos até aqui? Neste
especial, o Nexo conta a história do percurso acidentado das ferrovias no
Brasil.
‘Cristiano foi o primeiro que travou conversa, dizendo-lhe que as viagens de estrada de ferro cansavam muito, ao que Rubião respondeu que sim; para quem estava acostumado a costa de burro, acrescentou, a estrada de ferro cansava e não tinha graça; não se podia negar, porém, que era um progresso’. Machado de Assis, em ‘Quincas Borba’
Evolução da Malha Ferroviária
Nos trilhos do desenvolvimento
Obras das Estação da Luz em São Paulo, projeto arquiteto britânico Charles Henry Driver. Terminal foi inaugurado em 1867 – foto Guilherme Ganesl |
Trinta anos depois da abertura das primeiras ferrovias inglesas, a novidade chegou ao Brasil. O trecho inaugural no país tinha 14,5 quilômetros e conectava a estação Guia de Pacobaíba, no Porto Estrela, e a localidade de Fragoso, em direção a Petrópolis, ambas no atual município de Magé, no Rio de Janeiro. Era um projeto de Irineu Evangelista de Souza, o Barão (depois Visconde) de Mauá, banqueiro e empresário que foi precursor de diversas indústrias no Brasil. Era 1854.
A segunda ferrovia do país
surgiu no Nordeste, a Estrada de Ferro Recife ao São Francisco ou “Recife and
São Francisco Railway Company”, com 31,5 quilômetros de extensão. Em 1858, veio
a Estrada de Ferro D. Pedro II, que, três décadas depois, se tornaria a Estrada
de Ferro Central do Brasil, no Rio de Janeiro, um dos principais eixos de
desenvolvimento do país. Em 1877, já era possível ir de São Paulo ao Rio de
trem.
Malha Ferroviária no Brasil em 1890
Até o final do século, seriam
criadas pelo país diversas linhas que atendiam carga e passageiros, do Ceará ao
Rio Grande do Sul, do Paraná à Bahia. Em comum, todos os projetos tinham o
propósito principal de escoar produção agrícola para um porto de exportação. O
Estado brasileiro era um investidor em algumas linhas e empresas, mas a maior
parte do dinheiro era privado, entre investidores brasileiros com participação
no comércio do produto a ser escoado (café em São Paulo ou Rio de Janeiro,
açúcar em Pernambuco, erva mate no Paraná) e empresários estrangeiros.
No início do século 20, as
ferrovias do país já totalizavam mais de 17 mil quilômetros, com linhas em 15
estados brasileiros. Os dados são de um levantamento de 1909 do Centro Industrial
do Brasil, entidade antecessora à Firjan (Federação das Indústrias do Estado do
Rio de Janeiro).
O mesmo documento mostra que
no estado de São Paulo já operavam 12 companhias ferroviárias, bem mais do que
em qualquer outra das então 20 unidades administrativas do país.
Em 1867, a São Paulo Railway
conectou Santos a Jundiaí; em 1872, surgiu a Companhia Paulista, ligando
Jundiaí a Campinas. No mesmo ano, a Mogiana estabeleceu a conexão entre São
Paulo e o nordeste paulista. Em 1873, a Companhia Ituana inaugurou o transporte
ferroviário entre Jundiaí e Itu. Dois anos depois, a Sorocabana começou a
operar trens entre São Paulo e a região de Sorocaba.
Historiadores consideram a
década de 1870 como o primeiro boom ferroviário do país. A expansão da
cafeicultura, além de outros cultivos importantes, como algodão, açúcar e fumo,
aliados ao surgimento das primeiras indústrias na capital, impulsionaram o
surgimento de linhas e operadoras. Muitos dos primeiros proprietários das
linhas férreas paulistas eram fazendeiros, que viam os trilhos como
investimento importante para o desenvolvimento de seu negócio.
Embora o uso predominante
fosse de carga, passageiros respondiam por 25% do faturamento, segundo o
pesquisador Ralph Giesbrecht, autor de “O desmanche das ferrovias paulistas”.
“Com exceção dos trens de metrôs, as ferrovias no Brasil jamais foram
construídas para transportar passageiros, foram-no para transportar cargas.
Passageiros, numa época (século 19 e início do 20) em que transporte entre
cidades era feito por cavalos, mulas e mesmo a pé em estradas pavorosas,
entravam como um subproduto dos serviços da ferrovia”, afirmou.
Inauguração de ponte ferroviária em barra do Piraí, no Estado do Rio de Janeiro, em 1888. Foto: Marc Ferrez |
O impacto social das
ferrovias foi enorme. Cidades, vilas e bairros ganharam incentivo econômico. Na
região do que futuramente seria a Grande São Paulo, as linhas férreas eram um
atrativo para as indústrias que começavam a se multiplicar pelo país e que
procuravam se instalar perto de estações de trem. Logo atrás, vinham os
operários e trabalhadores, que formavam novos bairros residenciais.
Em Campinas, a festa de
inauguração da ligação com Jundiaí durou três dias e contou com importantes
autoridades, incluindo o presidente da província de São Paulo, Conselheiro
Francisco Xavier Pinto Lima. “Girândolas, foguetes, baterias, aclamações,
música, tudo isso ergueu-se num ímpeto tão sublime como a própria alma do povo
perder-se numa vertigem de alegria indefinida (...) Duas locomotivas
galhardamente enfeitadas com topes, fitas, laços e bandeiras abriram caminho
puxando dezenove wagons”, descreveu Bento Quirino dos Santos, político local.
Pelo interior, cidades
nasceram e prosperaram a partir dos trilhos. Em São Paulo, Presidente Prudente,
Araçatuba, Marília e Porto Ferreira são exemplos de lugares que devem sua
existência à ferrovia. No Ceará, povoados em torno de estações rapidamente se
emanciparam dos municípios-sede, caso de Camocim, que se separou de Granja.
‘Sobral, Ipu e Camocim são
cidades que cresceram na esteira do desenvolvimento trazido após a ligação do
litoral norte com o alto sertão e com a Ibiapaba. Tais cidades tornaram-se
entrepostos comerciais, absorvendo a produção das fazendas e plantações da
região, e devolvendo produtos manufaturados e industrializados’, relata o
historiador Raimundo Alves de Araújo.
Era intenso o vaivém de
pessoas, correspondência e mercadorias. Um documento de tarifas de frete da São
Paulo Railway Company, de 1866, dá uma ideia do que podia ir a bordo: entre as
categorias de preços há entradas para 'peixe fresco, ostras, caça, verduras e
frutas', 'máquinas e utensílios para a agricultura', 'mobílias, caixas com
chapéus', 'pólvora em barris' e 'objetos frágeis e de grande responsabilidade,
como planos, espelhos, vidros…'”.
As estações de trem, algumas
com arquitetura inovadora e grandiosa, muitas vezes projetadas por
profissionais vindos do exterior, se tornaram marcos visuais e epicentros da
vida social das comunidades. Os projetos iam do rebuscamento vitoriano dos
projetos em estilo inglês do século 19, que tem na Estação da Luz, em São
Paulo, seu exemplo mais famoso, à geometria art déco do pós-Primeira Guerra,
que caracteriza a imponente Central do Brasil, no Rio de Janeiro.
‘Quando você instala um
trecho ferroviário de um ponto a outro tem toda uma infraestrutura que precisa
ser constituída e isso cria um espaço de convivência, de mobilidade, de
circulação, de fluxo, de pessoas, de máquinas, capital, mão de obra’, disse
Guilherme Grandi, pesquisador e professor da FEA-USP (Faculdade de Administração
e Economia da USP).
Uma nova classe de figuras
sociais surgiu com a ferrovia. É o caso do ‘fazendeiro absenteísta’, na
definição de Grandi, que deixa a fazenda para morar nos grandes centros. O
pesquisador lembra que a família Prado, por exemplo, foi se instalar no bairro
de Campos Elíseos, em São Paulo, perto da Estação da Luz, ainda que seu
principal negócio fosse a Fazenda Guatapará, perto de Ribeirão Preto.
‘Mamãe só viajava de 2." classe. Nesse caso não era por economia e sim por ser muito mais divertido…. Nos vagões de segunda, era permitido o transporte de volumes grandes e de animais. Viviam sempre apinhados de gente, de bichos e de mercadorias. Todo mundo se atropelava, ao entrar no trem, na ânsia de conseguir sentar — havia o costume de marcar lugar pela janela antes de subir ao vagão —, tropeçando em jacas de frutas e de verduras, em trouxas de roupas, em bujões de leite, em cestas de ovos e em gente mesmo’. Zélia Gattai, em ‘Anarquistas Graças a Deus’
Trem à espera na Estação de Cruzeiro, parte de um dos ramais da Estrada de Ferro D. Pedro II (Depois Central do Brasil). Rede conectou Rio de Janeiro a São Paulo no Século 19. |
No início do século 20,
acontece o que historiadores consideram o segundo e último boom ferroviário do
país. Desta vez, a expansão se deu em muito mais regiões do Brasil.
Ainda era tímida e
desconectada a cobertura nacional de ferrovias. Um mapa do começo do século 20
mostra as linhas espalhadas em pontos dispersos do país, quase sempre bem perto
da costa. Em comparação, os Estados Unidos contavam em 1900 com 310 mil
quilômetros de linhas, um número quase 20 vezes maior que o Brasil. Era
possível dar a volta nos EUA a bordo de um trem. Mesmo localmente, a integração
enfrentava obstáculos, como os diversos tamanhos de bitolas (distância entre os
trilhos) existentes, o que limitava o tipo de composição que poderia rodar
sobre uma linha. Ao final do século 19, havia 11 tamanhos de bitola diferente
no país. Apesar de esforços oficiais para homogeneizar a medida, o problema
persistiu por décadas.
Malha ferroviária no Brasil em 1910
Segundo a comissão de engenheiros afirmou na apresentação do plano, seu objetivo era pôr fim ao 'pernicioso sistema de concessões a esmo, sem orientação segura, sem estudo sério, e o que é mais, sem atenção aos poderosos e variados interesses que se prendem à viação pública'.
Dentre as novas empresa
surgidas no começo do século 20 estava a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil,
que obteve concessão do governo federal para ligar, inicialmente, São Paulo a
Cuiabá. O destino foi posteriormente modificado para Corumbá, na parte sul do
Mato Grosso. A demanda de conectar a região vinha dos tempos do Império.
Apelidado de 'Trem do Pantanal', sua construção começou em 1914, atingindo a
cidade na divisa com o Paraguai apenas em 1952.
Estação João Felipe, em Fortaleza. Construída em 1880, foi o terminal central da Estrada de Ferro que chegaria até Crato, em 192 |
Em 1906, é criada a Brazil
Railway Company. Em dez anos, se tornou o maior conglomerado privado de trens e
trilhos do país, responsável por quase metade da extensão ferroviária
brasileira. Funcionando como holding, controlava dez operadoras por todo o
país, além de serviços de bonde em cidades como São Paulo e Salvador.
A BRC esteve por trás de uma
das raras tentativas de se levar a ferrovia para a região norte, por meio da
dramática ferrovia Madeira-Mamoré.
Construída na inóspita selva
amazônica, custou a vida de milhares de trabalhadores que tombaram vítimas de
doenças tropicais. Quando inaugurada, em 1912, levou látex de Guajará-Mirim a
Porto Velho, cidades fundadas com a ferrovia.
As condições de trabalho não
eram boas nas obras ferroviárias pelo país, especialmente as que precisavam
vencer obstáculos naturais difíceis. Sobre a realização da Estrada de Ferro Vitória
Minas, em 1904, o jornalista e advogado Alencar Araripe escreveu que
'arremetendo contra o desconhecido, [a ferrovia] travou batalha
formidável, vencendo distâncias enormes, a solidão, a insalubridade das regiões
quase inóspitas, cobertas de florestas e charcos, meio hostil, devorador de
vidas'.
Interior do carro-restaurante de um dos ‘trens de aço’ adquiridos pela Cia. Paulista de Estradas de Ferro, em 1928 |
A Companhia Paulista foi pioneira também, na década de 20, na eletrificação de suas linhas, em substituição às Marias Fumaças, e na utilização de carros de aço, menos barulhentos que os antigos de madeira. Eles chegaram em 1928, fabricados nos Estados Unidos pela American Car & Foundry Co: dois carros de correio, dois de bagagem-chefe, cinco de primeira classe, sete de segunda classe e dois restaurantes.
Por outro lado, muitas
empresas concessionárias não tiveram o mesmo êxito. Entre desmandos
administrativos e um estado que subsidiava sem cobrar resultados, muitas
operadoras se viram em péssima situação financeira no transcorrer das primeiras
décadas do século 20.
O caso da Brazil Railway
Company é emblemático. Controlada pelo magnata americano Percival Farquhar,
tinha uma complicada situação administrativa, sendo dividida em empresas e
ramos de negócio diferentes. A má gestão teve como consequência trens mal
cuidados e obsoletos, além de trilhos e equipamentos que se deterioravam em
depósitos.
Oficiais do governo americano
(a empresa tinha sede no estado de Maine, no nordeste dos EUA) já vinham
expressando preocupação com os desmandos do 'sindicato Farquhar', o
guarda-chuva de dezenas de negócios controlados pelo magnata. Em 1917, a
empresa pediu concordata e, três anos depois, foi encampada pelo governo
brasileiro.
“Lá vai o trem com o menino
Lá vai a vida a rodar
Lá vai ciranda e destino Cidade e noite a girar
Lá vai o trem sem destino Pro dia novo encontrar
Correndo vai pela terra
Vai pela serra Vai pelo mar”
Ferreira
Goulart em ‘Poema Sujo’, 1976
Interior de São Paulo ganhou sua ligação ferroviário em 1919, como parte da rede da empresa Sorocabana. O prédio Art Déco da foto foi inaugurado em 1944. |
As autoridades brasileiras
socorreriam inúmeras operadoras nas décadas seguintes.
Mas cada operadora
encampada não era depois arrendada para outra empresa: tornava-se uma estatal.
Até 1948, a União se tornaria proprietária de 75% de toda a malha nacional, de
acordo com o professor Ivanil Nunes, professor do curso de Economia da Unifesp
(Universidade Federal de São Paulo) e pesquisador do aspecto econômico das
ferrovias.
As motivações do governo eram
ainda de ordem social: era importante que linhas não fossem interrompidas e que
trabalhadores não ficassem sem emprego. A administração delas ficou a cargo da
IFE (Inspetoria Federal de Estradas) órgão do Ministério da Viação e Obras
Públicas, que tinha sob a sua alçada as ferrovias e as rodovias.
Antes disso, no centenário da
Independência, em 1922, o sistema ferroviário já alcançara 29 mil quilômetros
de extensão. Cerca de 2.000 locomotivas a vapor e 30 mil vagões transitavam
pelos trilhos nacionais. Era pouco mais que o triplo da malha existente na
época da Proclamação da República.
Malha Ferroviária no Brasil em 1930
Interior de São Paulo ganhou sua ligação ferroviário em 1919, como parte da rede da empresa Sorocabana. O prédio Art Déco da foto foi inaugurado em 1944. |
Mas é no fim da década de 1920 que as rodovias e o automóvel começam, aos poucos, a se tornar prioridade de políticas públicas, ainda que seu uso ainda fosse restrito a uma minoria. A inauguração da mentalidade 'rodoviarista'na administração pública se deve a Washington Luis, presidente do Brasil entre 1926 e 30. Seu famoso lema era 'governar é construir estradas'. É ele quem inaugura em 1928 a primeira estrada asfaltada entre Rio de Janeiro e São Paulo. A Rio-São Paulo seria a precursora da Via Dutra.
Na década de 1950, no governo
de Juscelino Kubitschek, nasce a indústria automobilística brasileira com
fabricantes de origens europeia e norte-americana. É o grande impulso para a
disseminação do carro entre a população. Até então, só era possível comprar
modelos importados no país, o que restringia seu alcance. Esse movimento não
brotou de uma hora para outra, mas foi possibilitado por iniciativas do governo
de Getúlio Vargas, como a criação da CSN (Companhia Siderúrgica Nacional) e da
Petrobras, que incrementou a autonomia nacional na produção de petróleo e
derivados.
O trem foi sendo cada
vez mais entendido como um meio de transporte ultrapassado, desconfortável e, o
pior para alguns, coletivo. As classes mais abastadas foram as primeiros a
parar de usar o trem, por volta dos anos 1940, período que marca o início de um
processo que foi deteriorando a qualidade do serviço.
Plataforma da Estação Central do Brasil, foto de 1968. O principal terminal ferroviário da cidade do Rio de Janeiro foi aberto em 1858. |
‘Chega um momento em que não
faz diferença entre ir de primeira ou segunda classe era uma questão mais de
espaço do que de conforto, o conforto é parecido, só que a primeira classe era
mais restrito’, explicou Grandi.
“Caminho do ferro mandaram arrancar
Velho maquinista com seu boné
Lembra o povo alegre que vinha cortejar
Maria Fumaça, não canta mais
Para moças, flores, janelas e quintais
Na praça vazia, um grito um ai
Casas esquecidas, viúvas nos portais”
Milton
Nascimento, em ‘Ponta de Areia’
Uma era chega ao fim
Carro de primeira classe da Cia. Paulista de Estradas de Ferro, com poltronas giratórias |
Operadoras iam mal por
problemas de gestão e falta de investimento, mas também porque muitas estavam
organizadas em torno de produtos agrícolas que começaram a entrar em decadência
na época da Segunda Guerra Mundial. Além disso, o transporte de cargas por
rodovia crescia a cada ano, com a vantagem de conectar todo o país e levar
produtos de porta a porta. Assim, o trem deixou de ser uma opção para estratos
cada vez maiores de pessoas e negócios.
No início dos anos 1950, o
Estado brasileiro era responsável por 75% da malha do país, controlando 18
operadoras ferroviárias, em um total de 37 mil quilômetros. Encampadas ao longo
de várias décadas, a maior parte seguia em situação financeira complicada.
Malha Ferroviária no Brasil em 1960
As estatais dos trilhos sofriam com os clássicos problemas da administração pública, como corrupção e o fato de terem se tornado cabide de empregos. Segundo Grandi, a politização de cargos de chefia atrapalhou muito o desempenho das empresas: 'colocavam muita gente como presidente de companhia que não era do ramo, não tinha perfil técnico, colocava o sujeito como presidente de uma companhia dessas. Isso aconteceu com a Noroeste, Sorocabana, Rio-Minas e várias outras'.
Em 1952, o ministro de Estado
dos Negócios da Viação e Obras Públicas Álvaro de Souza Lima envia relatório ao
então presidente Getúlio Vargas em que recomenda 'medidas drásticas em relação
à melindrosa situação financeira das estradas de ferro, com a constituição, o
mais breve possível, da Rede Ferroviária Federal S.A.'
Juscelino Kubitschek assina a
lei 3.115, de 1957, que cria a RFFSA, responsável por 'administrar, explorar,
conservar, reequipar, ampliar, melhorar e manter em tráfego as estradas de
ferro a ela incorporadas'. Era sociedade de economia mista integrante vinculada
ao Ministério dos Transportes.
Dois anos antes, é aprovada a
lei que permite a erradicação de quaisquer aspectos do sistema ferroviário que
estivessem dando prejuízo. É neste ato que se inicia o encolhimento da rede
brasileira, embora não seja preciso falar em 'desmonte'. 'Só retiram os ramais,
linhas e serviços vistos como antieconômicos, como transporte de bagagem,
encomendas, animais e passageiros', pontua Nunes.
'Em um determinado ponto, a
ferrovia começou a desistir de suas linhas de passageiros e a forçar sua
desativação com serviços e horários cada vez piores', afirma Giesbrecht. 'Se
antes, no interior, se acertava o relógio com o apito do trem, agora tinha
virado costume o chefe da estação ligar para saber se o trem estava no horário.
Antes, isso não era necessário: o trem sempre estava no horário', diz Nunes. Em
paralelo, as rodovias iam ficando melhores e o automóvel, agora fabricado no
Brasil, mais acessível.
A última empresa a ser
estatizada foi a Companhia Paulista de Estradas de Ferro, em 1961. Apesar do
serviço e equipamento de ponta, com desempenho financeiro acima da média, foi
abalada por greves e pressões de sindicatos. Sob controle do estado de São
Paulo, iria constituir a Fepasa (Ferrovias Paulistas S.A.) ao lado de outras
quatro empresas, em 1971.
'Em certo sentido, pode-se
dizer que esse foi o momento em que acabou a era ferroviária no Brasil, se
entendermos que foi quando o setor privado nacional saiu completamente desse
mercado', explicou Grandi à revista Pesquisa Fapesp.
Anúncio da linha ‘De Luxo’ para Brasília, saindo de São Paulo e Campinas. Conexão por trilhos com a nova capital federal foi alcançada no fim da década de 1960. Viagem durava cerca de 25 horas. |
Nas décadas seguintes, todo o
sistema passou por uma transformação. 'Entre 1961 e 1991, ocorreu o processo de
transição do modelo de negócios. O governo federal e estado de São Paulo
investiram bilhões. O BNDES investiu R$ 55 bilhões em 30 anos. Que investimento
foi esse? Eles assumiram a parte podre do negócio, que foi sendo retirada do
sistema. Nisso, os transportes migraram para o rodoviário', diz Nunes.
Em número sempre decrescente,
linhas de passageiros continuaram funcionando em todo o país até o início da
década de 1990. Mas o serviço era precário e as composições, ultrapassadas. O
preconceito contra a ferrovia ganhou força. Em Presidente Prudente, no início
da década de 1970, a Igreja Católica culpava os trens da Fepasa por trazerem
mendigos para a cidade.
Trajetos que eram vencidos
por automóvel em questão de algumas horas, demoravam muito mais tempo sobre
trilhos. O Trem de Prata, serviço entre Rio e São Paulo lançado nos anos 1990
como alternativa de luxo no trajeto entre as duas maiores cidades do país,
demorava dez horas em um percurso que poderia ser feito entre quatro e seis
horas na estrada.
'As pessoas buscavam
resgatar o romantismo do trem, mas os atrasos passavam de cinco horas nos
últimos tempos. E daí não tem glamour que resista', contou o barman Tom de
Carvalho, que trabalhou na linha, à Folha de São Paulo.
Trem de passageiros em uma das duas linhas operadas pela Vale S.A. A composição da foto realiza o trajeto entre Vitória (ES) e Belo Horizonte (MG) |
Hoje, existem só duas linhas
de trem de longa distância transportando passageiros. As duas são administradas
pela mineradora Vale e contam com trens modernos e bem equipados: uma liga Belo
Horizonte (MG) a Vitória (ES), com 664 quilômetros, e a outra, São Luís (MA) a
Parauapebas (PA), com 870 quilômetros. O transporte de passageiros nessas linhas
é uma obrigação assumida pela mineradora no contrato de concessão assinado com
o governo em 1997.
Malha Ferroviária no Brasil em 2016
Fonte: Camilo Rocha, Thiago Quadros e Caroline Lopes | Nexo
Jornal
(JA, Fev19)