Augusto sempre se interessou por
arte. Começou ainda na adolescência a frequentar cursos de desenho e de
pintura. Jovem ainda, já era um pintor
conhecido no meio artístico da sua cidade e, mais tarde, em torno dos seus 60
anos, do seu país, do mercado internacional.
O tema de seus quadros variava. Era
como um escritor que, de repente toma contato com algum fato ou fala, e percebe
que aquilo daria um bom tema, começa escrever e a obra vai tomando corpo sozinha,
como se já não dependesse mais dele. Mas, ultimamente, parecia que havia
esgotado todos os temas - estava sem ideia do que pintar.
Refletindo, ocorreu que nas suas seis
décadas de existência, tivera
oportunidade de passar por momentos significativos, que ficaram marcados para sempre
na sua memória e que, só por isso, mereciam ser imortalizados numa obra de
arte.
Começou a listar esses momentos e percebeu
que não foram tantos assim. O que mais lhe marcou foram algumas pessoas e
alguns lugares que, por isso ou por aquilo, influenciaram seu modo de ser, a
sua percepção do mundo. Entretanto, nenhum desses itens daria um bom quadro, a
menos que fossem colocados dentro de um cenário, de um momento especial.
De suas lembranças o que destacou foi:
- Estar na missa aos domingos na igreja do bairro, junto com seus pais, ouvindo a prédica e as leituras do padre, o canto do coral, o som do órgão, observando as pessoas se ajoelhando, ficando em pé ou se sentando. Alguém recolhendo a ajuda para a paróquia numa sacolinha, todos indo para suas casas depois. O que restou deles, principalmente, foi uma lembrança genérica que remetia às sensações de carinho, simplicidade, responsabilidade, respeito e dedicação. Todos os momentos lhe pareciam tão familiares e prosaicos que, embora passassem uma energia muito positiva, nenhum era único, especial.
- Suas tias muito queridas, pessoas simples, que transformavam o amor que sentiam por ele em mimos, pequenos presentes ou doces, que lhe proporcionavam, sempre sorrindo simpáticas.
- Seus primos e irmãos vivendo, muitas vezes em locais diferentes, distantes, se comportavam como se fossem um só, baseados no exemplo de seus pais. Não havia competições entre eles. Naturalmente, compartilhar era a regra – o que era de um, era de todos.
- As namoradas foram os ‘amigos’ mais próximos. Foi através delas que percebeu quanto uma pessoa poderia ser prazerosamente próxima uma da outra, íntima, sem perder a sua identidade. Em princípio gostou de todas e, se não deu certo ficarem juntos por mais tempo, foi por circunstâncias, novos interesses ou preocupações.
- Esposa e filhos são para ele as pessoas mais próximas. Em todos os momentos eles têm a sua atenção, prioridade. Procura ser um bom esposo, bom pai, embora tenha dificuldade em definir exatamente o que é isso. O dia do primeiro encontro, o dia do casamento, do nascimento dos filhos.... todos foram momentos especiais, marcantes. Porém, foram momentos muito particulares que, certamente, não representariam interesse para a maioria das pessoas, para seu público.
- Os amigos, foram sendo colecionados ao longo da vida. Alguns ainda estão presentes; outros desapareceram. Esses com os quais ainda tem oportunidade de conviver, de encontrar, o fazem refletir sobre como a vida os marcou. Não apenas fisicamente, mas o modo de percebem as coisas. Muitos fatos aconteceram em suas vidas e deixaram, em cada um, a sua marca. Ideologias, perdas, ganhos,... Embora ainda sejam as mesmas pessoas, os mesmos amigos, parecem ser apenas uma sombra daquele que foram. Ficou imaginando se ele também não passaria essa imagem para eles. Mas e daí? Ele não era mais aquele que foi. Ele é o que é. Então...
- Os Colégios e Faculdades que frequentou todos deixaram nele a sua marca, e ele, eventualmente, tenha lá deixado a sua também. O que dizer: a festa disso ou daquilo, os bailinhos de fim de semana, a formatura, competições esportivas... O que restou foram alguns colegas que, encontra esporadicamente, com quem troca reminiscências sobre aquele tempo.
- Os empregos, todos foram importantes. Cada um à sua maneira. Cada um teve um papel na sua carreira profissional e sempre representaram algo mais do que apenas uma fonte de renda. Ele se identificava com as propostas de cada um, e se comportava, trabalhava, como se o negócio fosse seu. Trabalhar para ele nunca foi um fardo, muito contrário. Era uma oportunidade para se realizar como profissional e como pessoa.
- A cidade onde nasceu e mora, é uma parte importante na sua vida. É lá que ele se sente a vontade, em casa. Quantas vezes, ao fazer viagens mais longas, não vê a hora de poder voltar para essa cidade. Entretanto, quando está nela, muitas vezes, não a valoriza como deveria. Percebeu que as cidades onde teve oportunidade de ficar por mais tempo, tinham uma alma própria. Alguma coisa que as diferenciava, individualizava, em relação às demais, independentemente de sua aparência - era a sua forma de ser. Além da sua cidade, nenhuma outra o marcou tão significativamente. Apesar disso, embora ela tenha tantos atrativos, não considera nenhum tão especial, que mereça ser imortalizado numa tela.
- Sempre teve animais de estimação, especialmente cães. Eles foram seus companheiros silenciosos; sempre estiveram presentes e disponíveis, nos bons e nos maus momentos. Percebia que esse sentimento era recíproco, e se sentia bem com isso. Sempre foi assim.
- Casas, carros, acessórios - nada disso representa para ele a não ser o resultado de uma conquista, de uma realização. Não eram um fim; eram apenas um meio. Um meio de se viver confortavelmente, de se apresentar bem, de se deslocar com segurança, ...
É, estava difícil. O que deveria
pintar? Então parou de pensar em pessoas
e coisas, e começou a pensar nos sentimentos que teve ao longo de sua vida. Aí
ficou mais fácil. Logo lhe vieram à
mente algumas imagens:
¾ A
do garotinho olhando com carinho para seu pai que vinha chegando, ao final de um
dia de serviço, estacionando seu carro.
¾
Do
jovem deitado à noite em sua cama sentido o conforto do colchão onde
estava deitado, o calor das cobertas que o cobriam, a segurança da sua casa.
¾
Indo
assistir a um bom filme, naquele cinema, naquele Shopping que gostava
tanto.
Enfim, encontrar temas para suas
telas deixou de ser difícil. Ficou claro para ele que o que nos marca de fato
são os nossos sentimentos. Porque sentimos o que sentimos? Os sentimentos
nascem da razão (mente, pensamentos) mais as emoções. Por exemplo, quando você vê
um bebezinho e fica emocionado. Qual o motivo, o que aconteceu? Pode ser várias
as razões, mas uma delas pode ser, por exemplo:
‘A sua mente criou um quadro onde aquele
bebê representa a sua fragilidade num mundo hostil. E a emoção decorrente é devido
à gratidão gerada pela a figura da mãe que cuida dele com carinho, remetendo o seu pensamento para o sentimento gerado pela proteção que você recebeu, ou que gostaria de ter
recebido, quando esteve vulnerável também – mesmo já não sendo mais um bebê.’
Pensamento mais emoção produzem os
sentimentos. A emoção é a força, a
energia que nos faz ir na direção desejada, definida pelo pensamento. É a fonte
do poder, que move a nossa vida em todos
os campos. Quanto mais energia bem direcionada, maior o resultado, maior é a
nossa realização como ser humano.
Pensando nisso tudo, percebeu que
nunca tinha dado a importância que deveria ter dado para os seus sentimentos. Mas, nem por isso deixou de tê-los. Dentre
todos, selecionou um que considerou o mais importante:
‘Foi quando, num dia igual a todos os
outros, vindo do trabalho no fim da tarde, preocupado com muitas coisas, estava
no quarto de sua casa, quando sua filhinha de uns três anos o viu, e veio
correndo, alegre, abraçá-lo. Aquilo, mesmo para ele, normalmente frio, distante,
foi demais. Aquele criaturinha ficando feliz por vê-lo. Talvez ele não merecesse,
mas aceitou, e dos seus olhos escorreram algumas lágrimas. A partir daquele dia,
reviu seus valores e passou a dar a importância que sua família merecia. Seu
universo cresceu diminuindo, se é que isso é possível.’
A partir de então, Augusto não teve
mais dificuldade na escolha de temas para suas pinturas. Entendeu que liberando
a sua sensibilidade consegue perceber a energia que emana de cada objeto ou ser,
e, utilizando sua técnica, passar essa energia para seus quadros. Quem vê a obra
pronta percebe que ela é muito mais do que uma simples reprodução de imagem.
Além disso, quando pensa nos seus sentimentos
passados, como uma coisa puxa outra, sem perceber, passa a ter até sentimentos
que nunca teve, a se emocionar mais do
que originalmente. “Emoções são efêmeras. Sentimentos, pelo contrário. Perduram, marcam a vida de quem os sentiu.”
Imagem: Nicolay
Bogdanov-Belsky - 'Portrait of
Konstantin Korovin'
(JA, Jan16)