Ao lado de outros presidentes, Lula afirmou que acompanha 'com preocupação' a situação na Guiana, após a Venezuela declarar que vai anexar a região de Essequibo, e destacou que o Mercosul 'não pode ficar alheio' ao tema.
O petista disse que a disputa
não deve 'contaminar a integração nacional ou ameaçar a paz e estabilidade' e
que 'se há uma coisa que não queremos na América do Sul é guerra e conflito'.
Em nota conjunta, o bloco
sul-americano manifestou 'profunda preocupação' com a 'elevação das tensões'
entre as nações. Nesta sexta (08-Dez23), o Conselho de Segurança da ONU deve
discutir o assunto em um encontro 'urgente'.
Posição da Venezuela
O Brasil e a Inglaterra, que
colonizou a Guiana, tiveram uma disputa territorial no início do século 20 em
que o Brasil saiu derrotado. Essa área, conhecida como a região do Rio Pirara (a sílaba tônica é a paroxítona, como se fosse ‘Pirára’), está hoje em Essequibo. A história é conhecida como ‘A
Questão do Rio Pirara’. O consultor da Câmara dos Deputados, José Theodoro
Mascarenhas Menck, escreveu um livro com esse nome, publicado em 2009.
A única
derrota do Brasil em negociações por territórios
A perda da região do Rio
Pirara, que hoje faz parte de Essequibo, na Guiana, foi o único caso em que o
território brasileiro encolheu após uma arbitragem (o Brasil perdeu o território que hoje é o Uruguai,
mas isso foi em uma guerra, e não em uma negociação).
Durante o século 19, o Brasil se
envolveu em outras duas disputas, uma pelo Amapá, outra pelo oeste de Santa
Catarina. Nessas duas ocasiões, o país saiu vitorioso.
A terceira disputa
territorial foi com a Inglaterra, que na época era a metrópole da Guiana.
Inglaterra, França e Holanda
Durante o século 17, os
territórios que hoje formam Guiana Francesa, Suriname e Guiana pertenciam todos
à Holanda. Os holandeses ficaram só perto do litoral da Guiana, mas o interior
do país - as regiões mais ao sul, próximas do Brasil, eram de mato e
difíceis de penetrar.
Isso ficou assim até o início
do século 19, quando um general francês se tornou imperador e
começou uma campanha militar na Europa na qual conquistou diversos países
–inclusive a Holanda.
O imperador francês Napoleão
Bonaparte conquistou territórios da Holanda fora do continente europeu, e tomou
da Holanda essa região da América do Sul. Napoleão foi derrotado, e um terceiro
país virou o dono dessa parte da América do Sul: a Inglaterra.
Após a derrota da França
napoleônica, os países europeus se reuniram no Congresso de Viena, em 1815, para
discutir como seriam divididos os territórios. A solução foi dividir a região
da América do Sul em três:
o
A parte mais ao leste para os franceses (hoje Guiana Francesa).
o
A parte central para os holandeses (hoje
Suriname)
o A parte mais ocidental para os ingleses (hoje Guiana)
A disputa
por território entre Brasil e Guiana
No começo do século 19, as
fronteiras ainda estavam pouco definidas. Na década de 1830, um
explorador britânico, Roberto Hermann Schomburgk, fez uma série de visitas
exploratórias à região. Ele foi financiado por uma sociedade inglesa privada
que patrocinava expedições pelo mundo - era o mesmo grupo que pagava pelas
viagens do explorador David Livingstone pela África.
“Ele sugere uma fronteira que
invada o lado brasileiro, porque a 'linha Schomburgk' se estende para oeste,
além da linha do rio que até então marcava a divisão. Ele leva essa demarcação
para Londres, que aceita a linha como a demarcação da fronteira”, diz Menck.
Só que, para o Brasil, a
divisão que deveria valer era uma que havia sido estabelecida no Tratado de
Utrecht, no comecinho do século 18, pelo qual o limite do território brasileiro era
demarcado por diversos rios, como o Tacutu, que pertencem à bacia de um rio
maior, o rio Essequibo.
Tanto o Brasil como a
Venezuela, então, contestaram a demarcação da ‘linha Schomburgk’, e essas duas
disputas seriam definidas pela forma mais comum de resolução desses problemas
na época: uma arbitragem internacional.
Arbitragem é um método
alternativo de resolução de disputas. As partes em disputa submetem o litígio a
um árbitro, ou um tribunal arbitral, que vai tomar uma decisão que deverá ser
respeitada pelas partes. Este processo acontece fora dos tribunais
tradicionais. O árbitro do caso entre Inglaterra e o Brasil foi o rei da Itália
na época, Vitório Emanuel III.
Brasil e
Inglaterra
A Inglaterra venceu o Brasil
nessa arbitragem em 1904. Foi uma vitória parcial, pois a Guiana ficou com
dois terços do território em disputa, e o Brasil, com um terço. Na prática, o
Brasil perdeu o acesso à bacia do rio Essequibo.
Menck considera que dois
fatores pesaram na decisão pró-Guiana na época:
o O rei Vitório Emanuel III se aconselhou com acadêmicos de geografia e de direito internacional de universidades italianas, que disseram para o árbitro adotar conceitos que estavam sendo aplicados desde a Conferência de Berlim, em 1885, que determinava, grosso modo, que quem chegava primeiro podia ocupar. Acontece que o Brasil não era participante da Conferência de Berlim, e não deveria estar sujeito a essas regras, diz Menck.
o
Os documentos do Brasil que mostravam que o território brasileiro era
mais extenso nos séculos 17 e 18, anteriores às regras então usadas para resolver
disputas. O árbitro entendeu que ninguém conseguiu provar posse do território,
mas repartiu a área em dois terços para Inglaterra e um terço para o Brasil.
Menck afirma que o Brasil então enfrentou um dilema: se o país questionasse a arbitragem, colocaria em risco as então recentes vitórias em Santa Catarina e no Amapá, que foram bem mais significativas.
O caso da
Venezuela e Inglaterra
A mesma ‘linha Schomburgk’
traçada por um explorador britânico, que contrariou o Brasil, foi contestada
pela Venezuela.
O caso da Venezuela com a
Inglaterra também foi para uma arbitragem, mas, nesse caso, foi um tribunal
arbitral. Era um grupo composto por cinco árbitros: um deles era um diplomata
russo importante na época; dois foram indicados pela Inglaterra, e dois pela
Venezuela, que apontou juízes de um órgão que havia sido criado fazia pouco
tempo nos Estados Unidos, a Suprema Corte de Justiça.
Houve uma negociação secreta entre os árbitros, e o tribunal acabou decidindo dar vitória à Inglaterra. Décadas mais tarde, no começo dos anos 1960, um dos juízes americanos que tinha participado da arbitragem revelou que houve negociações secretas nessa decisão. Em 1963, a Venezuela passou a afirmar que houve conversa prévia antes da arbitragem, e que, portanto, o tribunal era viciado por um conluio para prejudicar a Venezuela.
Por que a
Venezuela pede território que nunca foi dela, mas do Brasil?
Menck afirma que quando
começou o processo de arbitragem para decidir o litígio entre Venezuela e a
Inglaterra, um agente do governo colonial inglês na Guiana mandou um mapa para
o tribunal em que apareciam os dois territórios que a Inglaterra disputava com
a Venezuela e com o Brasil. ‘Foi um erro burocrático, mandaram um mapa com a
parte de cima (ou seja, no norte), e a parte de baixo (do sul, que foi disputada com o Brasil).’
O tribunal de arbitragem fez
a linha de litígio com base nesse mapa, e é esse o mapa que, agora, Nicolás
Maduro usa para dizer qual é a área de Essequibo que a Venezuela quer.
Na época da arbitragem entre Venezuela e Inglaterra, um dos representantes do Brasil era Joaquim Nabuco. Ele chegou a mandar uma petição dizendo que o mapa estava errado, pois incluía o território que o Brasil reivindicava. Mas, na época, entendeu-se que isso poderia ser decidido depois, num segundo plano.
Fonte: Felipe Gutierrez | G1 Globo Mundo
(JA, Dez23)