Em 01-Set22, Biden falava dos Estados Unidos, quando alertou que ‘a democracia não pode sobreviver se um lado acreditar que uma eleição só pode ter dois resultados: ou ganhei ou fui roubado’. Bem que podia estar falando do Brasil.
Em outubro, Bolsonaro
enfrentará uma eleição que, segundo as pesquisas, provavelmente perderá. Ele diz
que aceitará o resultado, se for ‘limpo e transparente’ ̵ e realmente será.
O sistema brasileiro de
votação eletrônica é eficiente, e difícil de burlar. Mas aí está a pegada: Bolsonaro
continua dizendo que as pesquisas estão erradas, e que sua vitória está
garantida. Prossegue insinuando que a eleição poderia ser fraudada contra ele.
Não mostra evidências confiáveis, mas seus apoiadores acreditam. Parece estar
lançando as bases retóricas para gritar que houve fraude, e rejeitar o veredito
dos eleitores. Os brasileiros temem que ele possa, então, instigar uma
insurreição, do tipo que os Estados Unidos tiveram quando uma turba de
apoiadores de Trump invadiu o Capitólio – ou talvez pior.
Um motivo para temer que seja
seguido o livrinho de Trump é que Bolsonaro já fez isso várias vezes. Ele
semeia a divisão: o outro lado não está simplesmente errado, mas é mau. Acusa
as críticas de serem ‘fake news’. Tem instintos tão autoritários como os de
Trump: proclama-se saudoso da ditadura. Um dos filhos, que o assessora,
aplaudiu abertamente os desordeiros do Capitólio. Ele foi um dos últimos
líderes mundiais a reconhecer que Biden venceu.
Parlamentar encrenqueiro e
desbocado, Bolsonaro se elegeu presidente surfando numa furiosa onda contra o
estabelecido. Para essa improvável façanha, aprendera truques com aquele outro
aventureiro desbocado, que muitos subestimavam. Principalmente, a habilidade no
uso abusivo e enganoso das redes sociais. Liderando até hoje esse campo no
Brasil, ele convenceu seus apoiadores de duas coisas. Primeira: se perder é
porque a eleição terá sido evidentemente roubada. Segunda: a derrota para seu
principal adversário consagraria o país ao demônio. Na realidade paralela que
construiu, um governo Lula fecharia igrejas, entregaria o Brasil ao
narcotráfico, e estimularia os meninos a usarem saias.
Absurdo, tudo isso. Lula é um
esquerdista pragmático, e foi um presidente bastante bem-sucedido. Favorecido
pela alta das ‘commodities’, governou promovendo aumentos do poder aquisitivo,
e grande expansão do estado de bem-estar social. Depois, a bonança passou, e
Dilma Roussef, sua sucessora e protegida, sofreu ‘impeachment’ em meio a um
escândalo de corrupção que vinha de anos. O próprio Lula foi incriminado pelo
recebimento de propinas, embora suas condenações tenham sido depois anuladas, e
ele negue qualquer delito. Em suma, longe de ser o candidato ideal, situa-se
nitidamente no campo da normalidade ̵ e defende a democracia.
Não é esse o instinto de Bolsonaro. Ele pode até operar no sistema democrático, mas está sempre buscando modos de ludibriar seus limites. E é inquietante que isso aconteça num sistema muito menos robusto que aquele que cerceou Trump. Seria inconcebível militares americanos colaborando num golpe; mas no Brasil, o último regime militar só terminou em 1985. O exército está profundamente entrincheirado no governo e levantou questões sobre o processo eleitoral. Há falatórios de golpe.
Dificilmente ele ocorrerá,
mas pode surgir algum tipo de insurreição. Bolsonaro seguidamente incita a
violência. (De que outro modo interpretar
frases como ‘Vamos fuzilar a petralhada’?).
No primeiro semestre de 2022, mais de 45 políticos foram assassinados.
Os seguidores de Bolsonaro estão
mais armados que nunca: desde 2019, a posse privada de armas mais do que dobrou,
chegando a 2 milhões, como resultado do afrouxamento nos
controles. Na eventual vitória de Lula, bolsonaristas armados poderiam atacar o
STE.
Então, pergunta-se de que lado ficariam as forças policiais – totalizando cerca
de 400
mil pessoas – a quem caberia manter a ordem. Propensas à violência, essas
tropas gostam de Bolsonaro, que encaminhou um projeto de lei para resguardar
policiais que matarem suspeitos. Talvez alguns sejam mais leais a ele que à
Constituição. Havendo distúrbios nas ruas, Bolsonaro pode vir a invocar um
estado de emergência, para adiar a transmissão do cargo.
Ele representa, portanto,
enorme ameaça à maior democracia latino-americana, como também à maior floresta
úmida do mundo. (Sob seus cuidados, o
desmatamento e as queimadas da Amazônia se alastraram num ritmo 70% mais rápido
que antes). E em nenhuma hipótese, ele e
seu movimento irão embora. Com Trump, Bolsonaro aprendeu a manter influência e
poder, mesmo numa derrota.
Quando candidatos normais
perdem eleições, seus partidos tendem a substituí-los por novas lideranças.
Trump, porém, ao perder, disse aos apoiadores mais próximos que eles haviam
sido roubados, e adotou como grito de guerra a ‘Grande Mentira’. Ela une seu
movimento, o que lhe permite sufocar o Partido Republicano: dificilmente alguém
que a negue terá espaço no partido.
A mesma narrativa faria de
Bolsonaro, o mais influente político de oposição no Brasil. Sua base –
evangélicos, proprietários de armas, produtores rurais que se acham submetidos
a excessos de regulação e ameaçados por invasões de terras – adeririam,
convencidos de que seria ele o verdadeiro presidente. Sua base no Congresso e
nos estados sabotariam um governo Lula. E o Brasil se tornaria mais dividido
ainda.
O melhor seria que Bolsonaro
perdesse por uma diferença tal que tornasse implausível sua alegação de ter vencido
̵ seja no primeiro turno ou (mais
provavelmente) no segundo. Serão semanas
tensas, perigosas.
Outros países precisam apoiar
publicamente a democracia brasileira e, reservadamente, fazer ver aos militares
do país que qualquer coisa lembrando um golpe relegaria o Brasil à condição de
pária.
Os eleitores brasileiros devem resistir aos apelos de um populista inescrupuloso. Eles, e seu país, merecem mais.
Fonte: Revista ‘The Economist’, Set22 | AC Boa Nova
(JA, Set22)