Publicado em janeiro de 1898,
na primeira página do L’Aurore, ‘J’Accuse’ é um dos artigos de jornal mais
influentes da história da imprensa. A carta aberta do escritor Émile Zola ao
presidente Félix Faure é tida como um monumento de coragem moral e desassombro
político.
Emile Zola, 1840-1902, escritor Francês |
A repercussão na época foi
bem outra. No dia seguinte à sua publicação, milhares de pessoas tomaram as
ruas das maiores cidades francesas. Multidões acossaram judeus, depredaram suas
lojas, e atacaram sinagogas. ‘Morte aos traidores!’, gritavam.
Alfred Dreyfus, 1859-1935 |
O artigo saiu três dias
depois do comandante Ferdinand Esterhazy,
o verdadeiro culpado da traição atribuída ao capitão Alfred Dreyfus, judeu, ser inocentado pelo Conselho de
Guerra. Encarregados de coibir os pogroms, os policiais confraternizaram com os
antissemitas.
Quem leu ‘Proust Among the
Nations’, o livro de Jacqueline Rose sobre o caso Dreyfus, lembrou-se dele
quando das arruaças de rua promovidas por apoiadores de Bolsonaro. Com a
diferença que a violência política na França foi física. No Brasil, ela é mais
verbal —por ora. O que liga lá e cá é o ódio.
Uma semana depois do artigo
no L’Aurore, que vendeu 300 mil exemplares, estudantes e aspirantes a artista
circularam um abaixo-assinado. Solidarizavam-se com Zola, que foi processado, e
pediam a revisão do julgamento de Esterhazy.
Marcel Proust, 1871-1922 |
Centenas de escritores,
pintores e músicos aderiram ao manifesto. Ele fez com que a palavra intelectual
adquirisse o seu sentido moderno. Entre os que colheram assinaturas estava um
grã-fino de 26 anos que não sabia bem o que fazer da vida, Marcel Proust.
Ele foi a diversas sessões do
julgamento de Zola. Levava sanduíches para não ter que sair para comer e perder
um lance importante. Existencialmente, sua adesão à causa de Dreyfus foi
difícil. Sua mãe era judia e o pai, católico. Pela tradição, era judeu, mas
fora batizado.
Seu pai e seu irmão achavam
que Dreyfus era culpado. Já o bigodudinho Marcel militou para provar a
inocência do oficial condenado. Sua mãe, simpática ao capitão, punha panos
quentes na cizânia familiar.
Proust não se mobilizou pela
inocência do capitão porque fosse judeu. Agnóstico, acreditava no dever moral
de se bater pela justiça. O caso Dreyfus foi capital para o seu entendimento da
França. Por isso ele ocupa tantas páginas —inesquecíveis— em ‘À Procura do
Tempo Perdido’.
Proust constatou que o país
estava dividido e o ódio se espraiara. A ponto de, numa carta, perguntar a um
amigo: ‘E quanto a nós, temos também o direito de odiar?’
Raiz da ideologia do
antissemitismo: cria bodes expiatórios fantasmagóricos e se move para
massacrá-los. A operação é presidida pela indiferença ao sofrimento imposto aos
outros. Indiferença que, em ‘Tempo Perdido’, Proust diz ser ‘a mais terrível e
duradoura forma de crueldade’.
Dreyfus não foi o
protagonista de um erro judiciário; foi vítima de uma armação urdida pelo
comando do Exército. A energia que a pôs em marcha foi a da crueldade do
Gabinete do Ódio antissemita, disseminado na sociedade francesa.
Assim como Zola, o capitão
foi inocentado. Readmitido no Exército, lutou na Primeira Guerra Mundial e
ganhou a Legião de Honra. Salvou-se graças a um punhado de heróis: Zola, o
coronel Picquard, que desmontou a fraude, e, com os meios que tinham, Proust e
seus amigos.
A história continuou e se
complicou. O caso Dreyfus convenceu Theodor Herzl, vivendo em Paris, que a
emancipação dos judeus era impossível —teriam que criar um país para se
protegerem do antissemitismo. Começou a agitação sionista.
Veio a Segunda Guerra, e a
catástrofe do genocídio judaico. A viúva de Dreyfus, Lucie, teve que mudar de
nome aos 73 anos e viver escondida. Matilde, sua neta que ajudava a Cruz
Vermelha, foi capturada pelo governo francês, e entregue aos nazistas, morrendo
em Auschwitz. A criação de Israel, diz Jacqueline Rose, levou à catástrofe de
outro povo, o palestino.
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Fonte: Mario Sergio Conti, jornalista, autor de ‘Notícias do
Planalto’ | FSP
(JA, Jul20)