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‘Um
chopis e dois pastel’, ‘choveindo’,
que também pode soar como ‘chovennndo’,
‘orra meu’, e ‘véio’ são expressões ou pronúncias que tornam
possíveis, para muita gente, a identificação do falante como nativo da cidade
de São Paulo.
É o dialeto ou sotaque paulistano,
tão diferente de outros, mas tão próprio e característico de quem o expressa,
como o chiado o é para os cariocas. Ele se formou ao longo dos 466 anos da cidade, completados no dia 25 de janeiro de 2020.
Cada modo de falar é próprio de uma comunidade,
seja um bairro, uma cidade, um estado ou país — basta ver as diferenças entre o
português falado no Brasil e o de Portugal.
O desenvolvimento do ‘paulistanês’ é
resultado da história da própria cidade.
Índios
No princípio eram os índios, com suas
dezenas de línguas — cerca de 380 em todo país,
na época do descobrimento — principalmente o tupi ou tupi antigo, falado pelas
tribos de povos dessa etnia, que habitavam a maior parte do litoral do Brasil
no século 16, aí incluído o Planalto de Piratininga,
onde está assentada a cidade de São Paulo. Entre elas estavam os tupinambás,
tupiniquins, caetés, tamoios, potiguaras, temiminós e tabajaras.
Colonizadores
portugueses, escravos africanos, Imigrantes italianos
Depois vieram os colonizadores
portugueses, de várias partes de Portugal, cada uma com seu linguajar e sua
pronúncia. Mais tarde, chegaram os escravos africanos, e suas variadas línguas
e, mais recentemente, os imigrantes de diversos países, com destaque para os
italianos.
Final Século 19
‘O sotaque da cidade de São Paulo é
uma grande mistura’, diz o músico e pesquisador Ivan Vilela, da Faculdade de
Música, da Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de são Paulo (ECA-USP). ‘Inicialmente, até o final do
século 19, era o caipira, que ainda está
presente em todo o interior do estado, sul de Minas Gerais, e Triângulo Mineiro,
que foi o eixo de difusão da cultura bandeirante’.
De acordo com ele, autor do livro ‘Cantando
a Própria História: Música Caipira e Enraizamento’, o paulistanês começa a
receber uma série de injeções linguísticas a partir dessa época.
‘Para se ter uma ideia, em 1883 o censo da população da cidade mostrou um número
maior de italianos do que de brasileiros’, diz. ‘Eles deixaram uma marca muito
forte no sotaque paulistano, que pode ser visto na obra de Juó Bananère [pseudônimo usado pelo escritor e
poeta brasileiro Alexandre Ribeiro Marcondes Machado para criar obras
literárias usando o modo de falar da colônia italiana de São Paulo na primeira
metade do século 20], e
quando se ouve Adoniran Barbosa’.
Vilela explica ainda que o sotaque
caipira foi expulso da cidade. ‘Num processo de modernização, São Paulo
começou a banir todos esses traços arcaicos, dentre eles a própria língua'
caipira, diz.
‘Paralelamente a isso, houve a
proclamação da República, com todo seu ideário positivista, que deu suporte a
ela e interferiu na relação da população com a cultura popular que a cercava.
Começou a haver uma prevalência do saber erudito sobre o popular’.
Imigrantes japoneses, espanhóis
e libaneses
Depois começaram a chegar outras
levas de imigrantes, como japoneses, espanhóis e libaneses. A consequência foi
que em cada canto da cidade surgiu uma marca característica.
‘Na zona sul, na região de Santo
Amaro, por exemplo, predomina o sotaque nordestino. Na zona norte a influência
já é mais portuguesa’, afirma Vilela.
O desenvolvimento do ‘paulistanês’ é resultado da história da própria cidade |
Século 20
Além disso, o êxodo rural em direção
à capital, ocorrido a partir de 1920,
como a derrocada da cultura do café, trouxe de volta o falar caipira para a
cidade de São Paulo, segundo ele.
A historiadora e linguista Lívia
Oushiro, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), tem outra explicação para a presença, até hoje, do sotaque
caipira na capital.
‘É difícil determinar se ele
ressurgiu na periferia ou se nunca desapareceu da cidade’, diz. ‘Acho a segunda
hipótese mais provável. Mas, sem dúvida, a sua presença nas periferias tem a
ver com o grande influxo de migrantes do interior à cidade de São Paulo, ao
longo da segunda metade do século 20’.
O tal do 'R'
Ela explica que no Brasil, o grande
diferenciador de sotaques é a pronúncia da letra ‘R’, principalmente quando em final de sílaba, em palavras como
‘porta’ e ‘mulher’.
‘Na capital paulista, há duas
pronúncias principais para esse som:
o O chamado R retroflexo, que é também conhecido como R caipira e que está bastante presente na fala
dos moradores de periferia [pense, por exemplo, num rapper falando 'certo,
mano!']’,
explica.
o ‘A outra é o
chamado R
tepe, que é usado principalmente nas
regiões centrais da cidade’.
Esse R soa como na palavra 'pirata', diferentemente do R retroflexo, que é usado em Piracicaba, por
exemplo, como em ‘porrrta’.
O primeiro é considerado um traço
mais central geograficamente, e pode ter conotações de classe (mais alta) e as concomitantes associações de
formalidade’, diz o linguista Thomas Daniel Finbow, do Departamento de
Linguística, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da USP. ‘O retroflexo, por sua vez, é visto como mais
periférico e informal’.
Uma outra característica facilmente
reconhecível do paulistanês é o jeito de pronunciar as sílabas ‘ti’ e ‘di’
- que soam como ‘tchi’ e ‘dgi’ -, de acordo com Lívia, que é autora da
tese de doutorado sobre o tema.
Ela lembra ainda da ditongação (união, em uma mesma sílaba, de uma
vogal silábica e uma semivogal) do ‘em’ em palavras como fazenda
e entendendo. ‘Elas acabam sendo
pronunciadas como fazeinda e enteindeindo'.
São Paulo tem também vocábulos
próprios. O paulistano usa, por exemplo marmita,
busão e mexerica
em vez de quentinha, coletivo/ônibus,
tangerina/bergamota de outras regiões’, afirma a linguista.
‘Na zona sul, na região de Santo Amaro, por exemplo, predomina o sotaque nordestino. Na zona norte a influência já é mais portuguesa’ |
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'Os carro vermelho'
Se observar direito, quem visita a
cidade vai notar que em algumas regiões, principalmente naquelas com maior
número de descendentes de italianos, como os bairros da Moóca e da Bela Vista (Bixiga), não se usa muito o plural, como em ‘os
carro vermelho’.
Isso porque o italiano não usa o ‘s’
para formar o plural.
"No caso do italiano, ele deriva do
caso nominativo latino, cujo plural é formado pelo uso, no final da palavra, de 'i', para o masculino, e de 'e', para o feminino, e não do 's'.",
diz Manoel Mourivaldo Santiago-Almeida, doutor e pós-doutor em Letras e
professor titular da USP.
‘O português e o espanhol usam o s,
porque derivam do acusativo plural latino, que já o tinha. Isso é um exemplo de
como a gramática de um idioma influencia outro’.
Para Finbow, apesar de em muitos
casos fugir das normas cultas da língua portuguesa, não se deve considerar o
sotaque paulistano - ou qualquer sotaque - como errado. ‘Ele não deveria ser
enxergado como uma série de desvios da norma padrão, porque as raízes de alguns
traços das variedades paulistanas, antecedem a formação de uma norma culta, e
são fundamentalmente independentes dela’, explica.
Fonte:
Evanildo da Silveira | BBC News Brasil
(JA, Fev20)