Você
está pronto -e quer- viver para sempre?
“O
bilionário russo Dmitry Itskov está investindo uma fortuna para criar um
esquema tecnológico de se viver para sempre. Sim, é isso mesmo que você leu:
imortalidade! Apesar de a proposta estar mais perto de uma piração que de algo
viável, recursos digitais já podem oferecer, se não a vida eterna, uma boa
recriação do que somos e até uma certa ubiquidade. Mas será que queremos mesmo
viver para sempre? Estamos preparados para isso? E a tecnologia basta para tal?
Longe
de ser uma novidade, a busca da vida eterna existe desde a Antiguidade, com os
alquimistas e seu mítico 'elixir da longa vida'. O que muda agora é a enorme e
inédita quantidade de recursos investidos na epopeia da Iniciativa 2045, como é
chamada a pesquisa de Itskov.
A
premissa do russo é simples: como nosso corpo inevitavelmente envelhece e
morre, ele quer encontrar uma maneira de mapear nosso cérebro para que ele seja
'carregado digitalmente'COR em um avatar robótico ou holográfico, semelhantes à
pessoa. Tal mapeamento seria tão perfeito, que o novo ‘hospedeiro’ se
comportaria exatamente como o ‘original’, com sua personalidade, sua
inteligência, suas memórias... Ou seja, depois que o corpo biológico morresse,
seria possível continuar ‘vivendo’ em um novo corpo tecnológico. Mais que isso:
a nossa ‘essência’ estaria preservada indefinidamente: se acontecesse um
acidente com o avatar, bastaria ‘carregá-la’ para um novo.
Além
das dificuldades tecnológicas virtualmente intransponíveis, a iniciativa
levanta evidentes questões éticas e até religiosas. Para começar, os
neurocientistas simplesmente ainda não sabem –nem de longe– como atingir o
mapeamento do cérebro humano. No momento, estão tentando fazer isso com hydras,
animais extremamente primitivos. Além disso, não há nenhuma garantia que, caso
se consiga atingir essa incrível tarefa, o mapeamento carregará traços de
personalidade, inteligência, memórias.
Não é
de se estranhar, portanto, que o tema seja fartamente explorado por obras de
ficção. Na verdade, a série 'Caprica' (2009), um spin-off de 'Batllestar
Galactica' (2003 a 2009), é toda montada em cima de uma tecnologia que é
praticamente idêntica à proposta pela Iniciativa 2045: em uma sociedade
tecnologicamente muito mais avançada que a nossa, a menina-gênio Zoe Greystone
consegue fazer um mapeamento de sua 'essência' como a que Itskov busca. Após
sua morte, essa informação é carregada em um robô que seu pai vinha
desenvolvendo, o que lhe dá ‘vida’. Apesar do horrível corpo mecânico, a ‘essência’
de Zoe tem autonomia e consciência a ponto de acreditar que ela realmente está
ali e viva.
Esse
é um dos questionamentos centrais da série: ‘aquilo’ é mesmo Zoe e ela continua
viva?
Criado
a nossa imagem e semelhança
Incontáveis
outras obras já tentaram tapear a morte, seja por magia, como em 1O Retrato de
Dorian Gray1 (de Oscar Wilde, 1890), ou pela ciência, como em Frankenstein (de
Mary Shelley, 1818). Mais recentemente, o assunto foi abraçado pela cultura pop
no cinema e até pelos quadrinhos. O aspecto macabro deu lugar a todo tipo de
sentimento, inclusive heroísmo, alegria e esperança.
Bem
mais recente que essas obras, a série ‘Black Mirror’ já tratou da vida após a
morte pela tecnologia em dois episódios: ‘San Junipero’ e ‘Volto já’. E esse
último, de tudo que já foi falado aqui, é o que está mais próximo de acontecer.
Na verdade, assustadoramente próximo.
Sem
querer dar muitos ‘spoilers’, a protagonista do episódio volta a conviver com
seu falecido esposo usando recursos digitais. Isso só é possível porque o
sistema cria uma representação relativamente fiel da personalidade e das
memórias do morto a partir de sua presença digital, por exemplo redes sociais e
e-mails. Quanto mais a esposa dava acesso a informações do morto, mais seu 'pós
vida digital' ficava parecido a ele.
Acha
tudo isso uma 'viagem'? Pense de novo.
Vários
serviços online se propõem a identificar quem, o que e como somos a partir de
nossas pegadas digitais. Um dele é o Apply Magic Sauce, criado pelo
Psychometrics Centre da Universidade de Cambridge (Reino Unido). Entre vários
testes, o mais destacado é um que, a partir apenas de nossas curtidas no
Facebook, busca traçar nosso perfil psicológico em segundos. Os resultados,
apesar de imperfeitos, são impressionantes, considerando que a limitada origem
da informação.
Aí eu
me pergunto: se um experimento acadêmico é capaz de obter tal resultado a
partir apenas de nossas curtidas, imagine o que o próprio Facebook (ou o
Google, ou a Amazon, ou a Apple ou tantas outras empresas) são capazes de
conseguir com o oceano de dados que lhes entregamos o tempo todo e cada vez
mais.
Entende
por que ‘Volto já’ pode estar logo ali, dobrando a esquina? Até onde devemos ir?
Se a
realidade flerta com a ficção como acabamos de ver, talvez Itskov seja, afinal,
mais um visionário que um desvairado. Mas supondo que ele realmente obtenha
sucesso em sua pesquisa, será que isso é algo que realmente devemos almejar?
Em
seu histórico discurso para a turma de formandos de Stanford em 2005, Steve Jobs disse, ‘lembrar que logo estarei morto é
a ferramenta mais importante que eu encontrei para fazer grandes escolhas na
vida’.
O que
acontecerá se Itskov tiver sucesso com sua tecnologia? Nem estou entrando na
questão de se o que será carregado em seus avatares realmente estará vivo, mas
sim o que será de nós enquanto ainda estivermos ocupando o nosso corpo
biológico, aquele que a natureza nos concedeu. Se tivermos a possibilidade de
'viver para sempre', será que continuaremos lutando para viver a vida da melhor
maneira possível? Qual a chance de essa segunda (ou terceira, quarta,
quinta...) chance estragar justamente a nossa humanidade, transformando-nos em
uma raça preguiçosa e desleixada consigo mesma e com o mundo. Afinal, se ‘algo
der muito errado’ -ou seja, se você morrer- será como um game do Mario Bros:
você renascerá no último ‘checkpoint’.
Há
ainda o aspecto da ‘alma’, do ‘espírito’ ou seja lá qual for o nome que sua
religião dê para esse... ‘sopro divino’. Creio que Itskov não leve isso em
consideração, pois seria necessário iniciar uma nova linha de pesquisa, para
que isso também seja transferido com o cérebro mapeado.
Muita
gente pode achar tudo isso incrível, um universo de possibilidades que se
descortina diante da humanidade. Não estou aqui para julgar ninguém, mesmo
porque eles podem estar certos, e eu errado. Mas acho que Jobs dá, no discurso
acima, uma dica de valor inestimável de como devemos viver nossa vida. E morrer
depois.
E já
que citei tantas obras de ficção, gostaria de citar mais uma: o filme ‘O Homem
Bicentenário’ (1999), que conta a história de um robô chamado Andrew (vivido
por Robin Williams). Com o passar dos anos, ele começa a desenvolver emoções e
altera seu próprio corpo para que ele fique ‘humano’, sintetizando órgãos. Seu
grande desejo: ser reconhecido pela sociedade como humano. Mas, ao final,
percebe que isso só será possível no momento em que ele justamente abrir mão de
sua imortalidade robótica. Colocando de maneira bem direta, Andrew só poderia
ser humano se ele morresse. Bastante
emblemático, não acham?”
Texto:
Paulo Fernando Silvestre Jr., LinkedIn
Imagem:
Zoe Greystone, personagem da série Caprica, cuja ‘essência’ acaba sendo
carregada no robô U-87, dando-lhe ‘vida’ após a morte da menina
"Qual vida é passada? Qual vida é presente? Qual é a vida futura? Ou elas não existem independentemente, serão todas uma só, ocorrendo simultaneamente, variando apenas a percepção do momento?"
(JA,
Mar17)