“A ideia de democracia se baseia no
reconhecimento do outro. Nada tão antidemocrático como querer desqualificá-lo.
Isso vale sobretudo para aquele outro que é mais diferente de mim, mais
contrário, aquele que defende ideias que eu detesto. O direito democrático é,
antes de tudo, o direito do outro.
É celebre a tirada de que "o
inferno são os outros". Ao criá-la, Sartre nos lembrou que o outro está
sempre − e inevitavelmente − a nos frustrar, e que isso ocorre exatamente por
causa de sua alteridade: ele é aquele que nos dá limites. Mas é por isso mesmo
− ou seja, por nos impedir de bancar os totalitários − que ele nos faz bem e
que essa interação é salutar.
O regime democrático alimenta sua
legitimidade na deliberação e no debate. Para que esse processo seja autêntico,
é necessário que os atores sociais em cena participem com mente aberta, ou
seja, estejam dispostos a rever suas opiniões a partir do momento em que
escutam os pontos de vista dos demais, notadamente os daqueles de quem
divergem. Mas é claro que é preciso escutar.
É óbvio que tudo isso está a anos-luz
do que diariamente vemos circular na internet, com o incessante lançamento de
insultos sobre figuras públicas − "contra o político do partido de que não
gosto, vale tudo!" − ou sobre interlocutores que têm posições contrárias.
Além de inútil para a discussão política − e para qualquer relação civilizada
−, o xingatório é contraproducente, pois acaba por depor contra quem o profere.
Para ir adiante, qualquer discussão
precisa de certo método, certas regras do jogo. A esse respeito, o ensaísta
inglês Paul Graham esquematizou uma hierarquia de níveis quanto ao modo de
expressar a discordância ("How to disagree"). Parece-me útil
reproduzi-la aqui, embora resumidamente.
1.
Xingar
É a forma mais baixa, e infelizmente
a mais comum. E aí entram não só as ofensas claramente grosseiras, mas também
algumas outras com palavras mais elaboradas. Quando as coisas estão neste
nível, ainda não se chegou à discussão. É o subsolo da baixaria pura e simples.
2.
Argumento ‘ad hominem’
Já seria um começo de discussão, mas
se trata de um argumento muito fraco: ataca as características do oponente, sua
suposta falta de autoridade etc., em vez de ir à substância do que está em
pauta. Mas a toda hora ouvimos: "ele (ela) está dizendo isso porque é
'cabeça quente', porque brigou com a(o) companheira(o), porque é gay, porque
tem tal idade, porque teve ou não teve tal experiência etc.". Ora, o que
importa não são tais ou quais características individuais, mas a pertinência,
ou não, do argumento que a pessoa está apresentando. Eu já vi sujeitos meio
malucos afirmarem coisas sensatas (deve ter sido com aquela parte da cabeça que
funcionava direito).
3.
Colocar o foco no tom que o oponente usa, no modo como ele se
expressa
É um pequeno progresso em relação ao
nível anterior, pois já se ensaia olhar para o que foi dito, e não apenas para
a pessoa que o disse. Mas ainda é insuficiente para contestar a substância do
argumento contrário. Afinal, o sujeito pode estar se expressando mal, ou com
destempero, mas ainda assim estar dizendo algo que mereça atenção − quem
assistiu, ao filme argentino "Relatos Selvagens", recentemente
exibido, viu alguns exemplos. Se, porém, o que ele diz está incorreto, o que
vem ao caso é mostrar onde e por quê.
4.
Contradição
Finalmente, atinge-se o nível de
tentar responder ao que se disse, em vez de ficar focalizando o
"quem" e "como". O problema é que muitos se limitam a
enunciar a posição contrária, sem justificá-la. Por exemplo: "é
inacreditável que você negue a tendência para o aquecimento global; trata-se de
uma opinião científica muito respeitável". Convenhamos que o simples fato
de afirmar a posição é pouco; é preciso reforçá-la com argumentos.
5.
Contra argumentação
É um degrau a mais, na medida em que
se procura apresentar argumentos contrários aos do oponente. Podem ser
convincentes, desde que mirem bem o seu alvo. Mas como nem sempre há boa
pontaria, não raramente se põe cada contendor a afirmar uma ideia à parte, sem
perceber nenhum dos dois que eles estão a discutir duas coisas diferentes.
6.
Refutação
O debatedor localiza, na fala ou
escrita do oponente, um tópico do qual discorda e procura refutá-lo. Pode ser
um bom caminho, desde que aquele tópico seja uma parte realmente importante do
pensamento do outro.
7.
Refutação do ponto central
É a forma mais vigorosa de
argumentação. Algo do tipo: "O ponto central do que você afirma parece ser
tal e tal; mas está incorreto pelas razões tais e tais". Mesmo assim, não
se pode ter a garantia de que nossos argumentos, embora civilizados, venham a
se mostrar convincentes. A diferença é que os arrazoados dos níveis 2 e 3 − e,
mais ainda, os impropérios do nível 1 − nunca o são.” (Bôa Nova)
(JA,
Ago15)