O sociólogo italiano Domenico De Masi morreu aos 85 anos, em Roma.
Autor do conceito de ‘ócio criativo’, com um livro de mesmo nome que se tornou um best-seller. O conceito estabelece que o ócio,
longe de ser negativo, é um fator que estimula a criatividade pessoal.
De Masi residiu em 3 cidades
italianas: Nápoles, Milão e Roma.
Carreira
O sociólogo nasceu em
1938, em Rotello, uma pequena cidade da região de Molise, no
sul da Itália.
Começou a escrever
aos 19 anos, para a revista ‘Nord e Sud’, artigos de sociologia
urbana e do trabalho, e estudou em Paris, às vésperas do Maio de 1968, um movimento
político na França, marcado por greves e ocupações estudantis, que impulsionou
a politização da juventude.
Aos 22 anos, De Mais passou a lecionar na Universidade de
Nápoles.
Posteriormente, lecionou na renomada Universidade de
Roma, ‘La Sapienza’, onde fez por merecer receber o título de ‘Professor Emérito’,
e acabar sendo designado reitor da Faculdade de Ciências da Comunicação, dessa
mesma instituição.
Entre 1978 e 2000, dirigiu a S3. Studium,
escola de especialização em ciências organizacionais que fundou.
De Masi desenvolveu a teoria de que o tempo livre não
é algo negativo, mas imprescindível para estimular a criatividade individual, e
aprimorar a adaptação na sociedade globalizada e pós-industrial, marcada pelo
rápido crescimento tecnológico e do setor de serviços.
A prática do ‘ócio criativo’, prevê a união de três fatores:
- Trabalho, caracterizado pelo cumprimento de tarefas
necessárias;
- Estudo, através das ferramentas proporcionadas pela digitalização; e
- Diversão, isto é, o lazer necessário para evitar a mecanização do trabalho.
‘É pelo trabalho que produzimos riqueza, pelo estudo que produzimos conhecimento, e pela diversão que produzimos alegria. Ócio criativo é a união desses três fatores’.
Escreveu diversos livros, alguns deles tidos como
revolucionários. Entre eles, se destacam:
- Desenvolvimento Sem Trabalho,
- A Emoção e a Regra,
- O Ócio Criativo, e
- O Futuro do Trabalho.
De Masi dedicou boa parte da sua obra a questões relativas ao trabalho. Segundo ele, dos ateliês renascentistas à uberização dos serviços, o trabalho sofreu inúmeras transformações.
Em ‘O trabalho no século XXI’ (Sextante, 2022), ele mostra como, ao longo dos séculos, o trabalho espelhou nossos anseios e esperanças. E ele mesmo testemunhou as diferentes transições do trabalho, participando ativamente, tanto de um milenar sistema rural, quanto de uma bicentenária ordem industrial — e, agora, de um inédito advento pós-industrial.
No livro, De Masi analisou o declínio da perspectiva industrial na economia, e defendeu uma produção mais inteligente, livre e flexível, que valorizasse a felicidade humana.
‘Com o aumento da produtividade, a relação entre o tempo de trabalho e o tempo livre, mudou, em favor deste último. Durante sua vida, meu avô trabalhou 120 mil horas, meu pai 80 mil, e minhas filhas trabalharão 40 mil. Hoje, um italiano tem cerca de 640 mil horas de tempo livre, que ultrapassará 700 mil em 2030.
Como viemos de dois séculos de sociedade industrial centrada no trabalho, ainda não nos conscientizamos da importância do ócio criativo. Mas a pandemia nos permitiu refletir, e produziu o fenômeno da ‘The Great Resignation’ (a grande renúncia), que se prolongará nos próximos anos.’ — disse ele em entrevista, em 2022.
O sociólogo também previu, em ‘O mundo ainda é jovem’, que as mulheres serão o centro do mundo, e que padre será a única profissão na qual o homem não vai ser substituído por uma máquina.
‘Em 2030 as mulheres viverão três anos a mais que os homens. Cerca de 60% dos estudantes universitários, graduados e mestrandos, serão mulheres. Muitas têm, e continuarão a ter filhos, sem a necessidade de um marido; enquanto os homens continuarão sem a possiblidade de procriar sem uma mulher. Por tudo isso, as mulheres serão o centro do sistema social’ — disse em entrevista.
Na Itália, em 2019, o sociólogo influenciou a criação da renda básica de cidadania, benefício destinado a famílias de baixa renda, bandeira do partido antissistema ‘Movimento 5 Estrelas’ (M5S), hoje na oposição.
Descrito como ‘sociólogo dos trabalhadores’ pela
imprensa italiana, De Masi não se esquivava de debates políticos. Em 2019, quando seu
país via a escalada do populismo pela figura do político de extrema-direita
Matteo Salvini, o sociólogo escreveu que ‘o populismo nada mais é do que uma
explicação primitiva da sociedade e da política, em termos rudes, emocionais,
míticos, infantis, desleixados, e que leva as pessoas de volta a uma fase
anterior ao Iluminismo’.
De Masi defendia que a Itália deveria voltar a
investir na formação gratuita de jovens, através da eliminação das taxas
universitárias, com o objetivo de diminuir os índices de criminalidade das
regiões menos abastadas do país, e promover o aumento do número de eleitores.
‘Na Itália, ainda cometemos um erro: o diploma não
serve para encontrar trabalho. Pode até ajudar, mas serve especialmente para
formar cidadãos, e permitir que ele entenda o telejornal. Entretanto, é
preferível um desempregado com diploma, do que um desempregado sem diploma’,
afirmou em entrevista ao jornal Il Manifesto, em 2016. ‘Precisamos
investir em inovação e pesquisa. Ou a Itália muda, ou estamos condenados ao
terceiro mundo’.
No Brasil
O sociólogo era amigo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e chegou a visitá-lo na cadeia, em Curitiba. Quando o presidente brasileiro foi libertado, De Masi disse que sua fama no exterior continuava intacta, e que Lula ainda era uma das maiores lideranças mundiais.
Nas redes sociais, Lula lamentou a morte. Ele relembra que visitou o amigo durante uma viagem à Itália, há cerca de três meses. ‘Ele estava, como sempre, animado, com análises inteligentes, e cheio de ideias e planos. Sempre foi um defensor das causas sociais, do avanço das conquistas humanas, e de um mundo mais justo e solidário. Também foi muito atento e carinhoso com o Brasil, visitando o país sem nenhum medo de se posicionar, mesmo nos momentos mais difíceis’.
Lula chegou a Roma e se reuniu com o intelectual
italiano. (Jun23)
Sua admiração pelo Brasil lhe rendeu, em 2010, o título de cidadão honorário do Rio de Janeiro, e o sociólogo chegou a frequentar o escritório do arquiteto Oscar Niemeyer, a quem admirava.
O sociólogo e escritor italiano Domenico de Masi e o
fotógrafo Oliviero Toscani, nas Cataratas do Iguaçu, em Foz do Iguaçu.
Em 2012 De Masi esteve em Foz do Iguaçu, onde deu uma palestra no Salão Internacional do Livro sobre ‘A Felicidade’, livro escrito por ele, com fotos de Toscani, famoso pelas polêmicas fotografias que criou para as campanhas publicitárias da Benetton.
De Masi, em
uma entrevista, afirmou que o melhor lugar do mundo para morar era a Itália, e
o segundo lugar o Brasil, país ao qual ele dedicava uma grande admiração e
paixão.
Em seu livro ‘O Futuro Chegou’, de 2014, De Masi se dedicou a analisar o modelo de sociedade do Brasil. Segundo ele, após ser obrigado a copiar os sistemas Europeu e dos Estados Unidos durante séculos, o país tinha a chance de desenvolver seu próprio modelo de sociedade, diante da crise na América do Norte e no velho continente.
O sociólogo italiano chegou a dizer que o Brasil tem um pé atrás com a idealização da eficiência e da produtividade, propagadas pelos países ricos, o que ele considerava algo positivo. Tal resistência brasileira se deveria à influência indígena, que ele elogiava.
‘Os americanos espalharam pelo mundo a cultura do manager. A Itália se americanizou, por exemplo, até na cultura. Hoje lá só há rock e cinema americano. Vocês têm a bossa nova, têm novela’, disse ele.
Para De Masi, pensar é muito mais importante do que trabalhar. Em seu mundo ideal, tudo que não envolva criatividade será feito por máquinas, o que poderia libertar o homem.
Em entrevista sobre o lançamento da obra ‘Alfabeto da sociedade desorientada’, o italiano comparou o Rio a Nápoles. ‘Nápoles representa um modelo de cidade onde o espírito racional e cartesiano da metrópole convive com o emocionalismo caloroso da aldeia. Nápoles é o Rio de Janeiro da Europa, e o Rio é a Nápoles do Brasil’ — afirmou ele.
Morte
Segundo o jornal italiano ‘Il Fatto Quotidiano’, De
Masi descobriu que estava doente em 15 de agosto,
durante suas férias em Ravello, na costa Amalfitana.
Morreu no dia 9 de setembro
de 2023, aos 85 anos, em Roma. A causa da morte ainda não foi
divulgada. Ele deixa sua mulher, Susi Del Santo.
Nas redes sociais, Giuseppe Conte, ex-premiê da Itália e atual presidente da sigla, lamentou a morte do sociólogo. ‘Não é possível resumir em poucas linhas a profunda humanidade, o refinamento intelectual, a energia vital, a coragem, e o amor pelo conhecimento, de Domenico De Masi’, disse.
Fonte: WP, Globo, FSP – Alessandra Monterastelli, Gazeta do Povo
(JA, 09-Set23)