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Futuro Imortal


Os bebês têm necessidades e desejos, que manifestam ao seu jeito, e, principalmente, observam. Além disso, refletem sobre as reações que causam. É observando que ajustam o seu comportamento, até conseguir serem atendidos.  
Tiago, um bebê de três meses, não destoa da regra. Seu mundo é limitado basicamente pelos seus pais, dois irmãos, e o pequeno cachorrinho da casa. Ele raramente convive com outras pessoas. Entretanto, as que eventualmente se aproximam, são observadas e classificadas também.
É surpreendente essa percepção intuitiva, tão correta. Essa uma constatação nos leva  pensar sobre a validade da teoria fundamental do espiritismo que trata da reencarnação. Nesse caso, a alma de cada bebê poderia ser um espírito antigo, que passou por diversas reencarnações e que, nessa fase inicial de uma nova vida, ainda carrega, inconscientemente, os conhecimentos que assimilou com as experiências das suas vidas passadas.
Tiago considera a mãe como uma parte de si mesmo, tão familiar ele a percebe. Além disso, não sente nada de especial por ela. É a sua matriz provedora, sabe que pode contar com seu apoio incondicional  para superação de sua fragilidade atual. Por outro lado, fica intrigado com a insegurança dela com relação a ele, e a tudo mais. Parece que a grande dedicação que ela lhe dedica, é uma forma de se alienar. Para ele é ótimo, mas, ao mesmo tempo, sente pena dela. Ao invés de ter uma existência plena, deixou de enfrentar os problemas que certamente tem, e não busca mais realizar seus sonhos. Contenta-se em viver uma vida que escolhera em determinado momento, e da qual já não é a protagonista. É apenas uma atriz secundária, daquela que tinha todo o potencial para ser uma grande história.  Lamentável, um desperdício...
Seu pai vive fora a maior parte do tempo, pois trabalha todos os dias num local distante de casa. Sabe do orgulho que ele tem pelo fato de ser pai. Não sente orgulho dele, Tiago, mas dele mesmo. Tem orgulho por ter sido capaz de gerar um ser humano tão especial.  Dedica-se a prover o necessário para mantê-lo alimentado e saudável. Tem a esperança de que, algum dia, lá na frente, seu filho seja mais bem sucedido do que ele gostaria de ter sido. Por tudo isso, seu pai o trata com um carinho genuíno e alegre, que lhe faz bem. Gostaria de, algum dia, poder retribuir.
Seus dois irmãos mais velhos - Victor de quatro, e Lucas de dois anos, vivem numa dimensão da qual ele pode participar apenas ocasionalmente, quando eles lhe procuram. Normalmente isso acontece quando querem fazer graça, utilizando-o como objeto para chamar atenção dos adultos.  Aparentemente, eles não gostam dele; apenas o suportam. Talvez, inconscientemente, sintam ciúmes da maior atenção que os pais naturalmente lhe dedicam devido à sua pouca idade, fragilidade.  Eles não dividem nada com ele, ou entre si. Talvez imaginem precisar ter tudo o que for posível acumular, para facilitar a caminhada que intuem ter que fazer pela frente.
Observou que o cãozinho da casa o trata da mesma maneira que os irmãos. Porém ele, o cãozinho, os trata também assim. Sua prioridade é comida, seu espaço e passeios – nessa ordem. Quem lhe proporcione isso – normalmente o pai e mãe de Tiago – merece toda a sua atenção.
Num determinado dia, a atenção de Tiago foi dirigida para um homem, amigo de seu pai, que eventualmente vinha à sua casa. Êle o achou particularmente intrigante. O homem era  carinhoso com ele, sorria, produzia sons diferentes, engraçados e, às vezes, o fazia rir. Mas Tiago percebeu que aquele homem estava representando um personagem, e que, na realidade, por qualquer motivo, não era a pessoa feliz que queria aparentar ser. Tiago não pode fazer nada. Apenas observou.
Nos fins de semana, um sim e outro não, normalmente a família ia para o litoral, onde tinham um apartamento. Se fizesse sol, todos passavam a parte manhã na praia. Lá tinham um guarda sol, umas cadeiras. As crianças ficavam brincando, correndo uma atrás da outra, fazendo ‘castelos’ de areia, pulando as pequenas ondas que vinham dar na praia. Tiago, era muito pequeno para essas brincadeiras, mas ele também se divertia. Com uma pazinha ficava mexendo na areia molhada, batendo com ela no buraco cavado pelo seu pai; o buraco acabava sendo coberto pela água que vinha do mar, encontrando a areia, misturando tudo.  O mar, pelo menos no início, lhe pareceu muito estranho. Aquele ‘universo’ imenso que se movimentava sozinho, incontrolável - embora sempre mantendo o mesmo ritmo; o gosto salgado da água; a areia lavada que escorria entre os dedos; ... Mas, o que realmente lhe chamava atenção eram os frequentadores. Todos praticamente sem roupa, andando para lá e para cá; alguns, em dupla, batendo com uma raquete numa bolinha, num ritmo frenético e barulhento; os cachorrinhos que saiam correndo atrás das bolinhas perdidas, em movimento, como se tivessem sido jogadas para eles.  Os vendedores, disso e daquilo, que passavam oferecendo seus produtos, muitas vezes fazendo vozes e tipos para chamar atenção dos clientes em potencial. Achava isso tudo muito divertido, e o tempo passava rapidamente nessas ocasiões. Logo tinham que voltar para casa, tomar banho, almoçar, ... Pena!
O tempo foi passando e Tiago, pouco a pouco, foi deixando o papel de observador passivo e a se interessar mais pelas possibilidades lúdicas oferecidas por qualquer objeto que estivesse ao seu alcance, passando então a ser protagonista de ações. Sua criatividade permitia encontrar como transformar qualquer utilitário comum num brinquedo, e ficava entretido nesse processo.
Após cumprir seu primeiro ano de vida, começou a interagir mais com seus irmãos e outras crianças. Seu o dia passou a ser cada vez mais interessante e curto. E, quando chegava a hora de descansar, dormia assim que era colocado na cama.
Logo entrou numa escola para alunos da sua idade.  Novo ambiente, novos amiguinhos, ... Aquele bebê, aquele ser reflexivo que ele foi, definitivamente cedeu lugar para alguém híper ativo, reagente. O mundo que girava ao seu redor definia o que ele iria fazer a cada momento, e não o contrário. Esse comportamento foi mantido assim a partir de então. .
Aquele bebê tornou-se um menino, um adolescente, um adulto, totalmente integrado a um universo que o levava a reagir, conforme a necessidade, para conseguir superar os eventuais obstáculos à sua evolução pretendida.
Cumpriu o que se esperava dele: formação, carreira profissional, casamento, composição de patrimônio, família, ..
Lá na frente, ao chegar na maturidade passou a ter menos ambições, e consequentemente menos atitudes. Passou a ter mais tempo e oportunidades para pensar, refletir sobre a sua origem, o caminho percorrido, as pessoas que participaram de sua vida, as conquistas realizadas, os eventuais fracassos , e sobre o futuro previsível.
Aquele senhor, conforme a idade foi avançando, foi se aproximando cada vez mais do recém nascido que foi um dia – dependente dos cuidados dos outros, sem atitude, reflexivo,...  
Até que foi perdendo a consciência individual, mergulhando numa dimensão onde prevalecia as sombras,  onde apenas alguns sentidos primários permaneciam ativos, e que acabou por envolvê-lo, deixando-o com a sensação de estar no ventre da mãe novamente.
E depois, na sequência, voltou para desconhecido, provavelmente para o lugar de onde todos vêm originalmente, onde a energia individual despreendida do corpo passa a agregar um todo compartilhado, sem limitações, sem consciência, com um futuro agora imortal. 


“Entre uma vida e outra, como entre um dia e outro, existe a noite. A noite não é definitiva. É apenas uma pausa para descanso, recomposição, reflexão, para energização, preparação para uma nova vida, um novo dia. Embora a noite seja escura, ela carrega dentro de si uma semente, a semente da luz do dia que há de vir.  Cada vida, como o dia que surge, traz consigo esperança de superação, de realização – novas possibilidades, oportunidades."


(JA, Dez15)



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